top of page
  • Bruna Vinsky

Irmã de Glória Maria...

Na minha cabeça infantil de criança de 7 anos, duas mulheres tão icônicas e com tantas similitudes de

caráter, só podiam ser irmãs.



Sem dúvidas a figura feminina mais respeitada e admirável na minha infância se chamava Nazira Reis Cutrim, uma professora da rede estadual que também dava aulas particulares em sua casa, no bairro Vila do Bec, na cidade de Zé Doca, no meu amado estado materno, Maranhão. Inclusive, já falei dela no meu primeiro texto publicado aqui.


Recém chegada de mala e cuia (como boa paraense, a cuia do açaí não pode faltar, rsrs) no interior, onde até hoje mora a maioria de meus parentes por parte materna, eu tinha 7 anos e zero de alfabetização. Juro, nem as letras do meu nominho sabia desenhar, mas a casa de tia Nazira era na mesma rua da casa de minha avó, então era só questão de tempo para que esse meu “iletramento” se resolvesse.


Vários parentes meus estudaram com ela, inclusive meu irmão, então foi natural que me encaminhassem para aprender o B+A=BA com quem diziam ser a melhor professora da cidade. E ela era mesmo! Não só foi premiada muitas vezes, como também foi eternizada membro da Academia Zedoquense de Letras. Mas havia um porém, o outro lado da fama local de Nazira, que era o uso da palmatória.


Todos os parentes me alertavam sobre isso, fosse para me preparar ou só pelo sádico prazer de amedrontar uma criança, mas a minha vontade de conseguir ler as placas dos comércios, os letreiros dos velozes ônibus interestaduais e os gibis da Turma da Mônica era muito maior que a imaturidade de todos eles.


Fui sem medo, certa de que a palmatória não seria grande coisa perto do que faziam comigo em casa. Cheguei para a primeira aula alguns minutos adiantada, bati palma na rua e em poucos instantes ela abriu a cancela do portãozinho lateral de madeira, 10 passos depois eu estava pela primeira vez na salinha escura, adjacente à casa de tia Nazira — como ela mesma pedia que a chamássemos.


Passados 28 dias eu já sabia "ler e escrever de tudo", como dizia ela orgulhosa depois de me alfabetizar e plantar a semente da palavra escrita em meu coração para sempre. Sinto que tudo que escrevo hoje tem raiz nessa alfabetização, não só pela qualidade do aprendizado, mas pela apreciação que ela demonstrou por mim e minha aptidão natural pela escrita. É incrível quando alguém que admiramos tanto acredita na gente, isso é algo muito poderoso mesmo, me marcou muito, por isso a memória dessa experiência me é tão recorrente.


Comigo ela não teve carranca seria (que diziam que ela adotava durante as aulas) e nem palmatória, provavelmente porque eu queria estar ali com ela aprendendo e valorizei cada uma de suas lições. Nunca fiz deveres com tanta facilidade, era chegar em casa e já sair preenchendo o caderno de escrever, cheio de letras e frases pontilhadas para cobrir com o lápis. Escrever significava (e ainda significa) uma enorme liberdade e um sem fim de possibilidades para mim!


Toda vez que eu chegava da casa dela, me perguntavam como foi a aula para saber o que aprontei e qual teria sido a minha punição. Ficavam sempre chocados quando eu contava que, além de não ter palmatória, ela riu comigo e me deixou colher alguma fruta do seu quintal, me deu biscoitos com suco ou me convidou para entrar na sua casa depois da aula. Meus parentes não sabiam de crianças que tiveram a mesma abertura com ela, não entendiam porque comigo ela agia diferente ou dava liberdades que aos outros negava categoricamente. E esse era só mais um motivo para que meus parentes me estigmatizassem como a esquisita da família.


Eles sempre fizeram questão de destacar o quão diferente eu era de todos eles, dizendo que não nos parecíamos sequer nem fisicamente. Hoje, compreendendo um pouco mais do mundo, me orgulho muito de não parecem com essas pessoas, mas quando era criança isso me afetava muito negativamente. Isso tinha uma vibe meio Matilda (filme de 1997, Denny DeVito) e meio Feiurinha (livro de 1986, Pedro Bandeira), me garantiu uma forte e permanente dificuldade de sensação de pertencimento — o que de certa forma foi ótimo, já que me fez sair de lá e buscar lugares e relações que realmente me coubessem.


Mas não tinha mistério, nos dávamos bem por interesses em comum (pelo saber, pelas artes, pela cultura) e porque eu a admirava muito, tinha prazer em prestar atenção nela e ela percebia isso. Não arrancava folhas ou frutos das árvores de seu quintal no intervalo das aulas, lhe pedia a benção na chegada e na saída como ela gostava. Eu entendia que para receber um pouco de seu valioso conhecimento, o certo era lhe ter com todo o merecido respeito.


Tia Nazira era extremamente reservada e séria, não dava confiança a qualquer pessoa e nem aceitava qualquer tom de prosa. Talvez porque, numa cidadezinha bem de interior nos anos 90, qualquer “cisco virava Francisco” em bocas fofoqueiras. Muito especulavam sobre ela nunca ter se casado com um homem ou sequer aparecer com namorados, sua intimidade era um total mistério e eu nunca levei esses questionamentos alheios para ela.


Duvido que qualquer um a questionasse diretamente, o valor que ela tinha para a comunidade e o respeito que ela impunha sobre si mesma contrariavam todo o status quo que o povo tentasse impor sobre mulheres maduras, solteiras e não-brancas naquele contexto. Eu já achava ela icônica por tudo que ela nos permitia saber de si e pra mim isso era mais que suficiente. Por fim, Nazira não me deu apenas lições de alfabetização, ela me ensinou que as pessoas podem oferecer versões diferentes de si dependendo de como nos tratam e fazem sentir.


Mas onde entra a Glória Maria nessa história?


Por algum motivo bobo, da minha cabecinha infantil, por um tempão carreguei a certeza que tia Nazira e Glória Maria eram irmãs, lembro de olhar . Não pela cor da pele, nunca achei que minhas primas negras tinham parentesco com ela, mas sim pela postura similar entre ambas. Era no comportamento, na forma de se apresentar ao mundo que Glória e Nazira se pareciam, e muito!


Além de bem sucedidas e reservadas, eu via nelas duas mulheres extremamente livres e independentes, intelectuais cultas por essência, transbordando conhecimento em suas oratórias impecáveis, imponentes e ao mesmo tempo super elegantes. Na minha cabeça de criança, duas pessoas que passavam uma energia e atitudes tão parecidas, só podiam ser parentes. Afinal, foi isso que a parentada plantou na minha mente, com aquelas "brincadeiras" feitas para insinuar que eu não era da família, por não sermos parecidos. Essas coisas ficam mesmo na cabeça das crianças...


Enfim, presencialmente tia Nazira era a figura feminina mais almejável para mim, desejava muito ter traços do caráter dela quando crescesse, achava surreal o seu nível de conhecimento (realmente ímpar) e sua atitude de não se permitir invadir. E na TV era a Glória Maria. Por mais que meus pais me vestissem com inspiração nos figurinos da Xuxa, quem eu via com admiração era a mulher que falava vários idiomas e conhecia tantos países e culturas diferentes, trazendo isso pra gente no programa mais conceituado da televisão naquela época.


Não que eu não gostasse da Xuxa, é só que o foco dela sobre estímulos superficiais não atraia muito a minha mentalidade extremamente questionadora. Já a Glória, abordando as aventuras e eventos mais incríveis ao redor do planeta, encaixava perfeitamente como exemplo para a menina que sonhava escapar de uma realidade muito difícil. Percebe a diferença? Eu provavelmente nem sabia ainda o significado da palavra substância, mas era atrás disso que eu estava e a figura que me oferecia isso era a própria irmã da professora que eu idolatrava. Enfim, essa era a minha fantasia e daí se fortaleceu essa relação parassocial.


Todo mundo assistia Fantástico aos domingos, e quando minha mãe saía de casa nesse horário deixava com a gente a obrigação de assistir, apertando o botão REC no videocassete assim que entrasse a vinheta dizendo “É fan-tas-ti-co!”, ela dizia. Ai dos nossos lombos se não gravássemos! Mas a gente gravava e a cereja do bolo era ter os quadros de aventuras da Glória para rever depois e ficar sonhando com aquelas experiências e lugares incríveis. E os artistas que ela entrevistava? Era de encantar qualquer criança criativa.


Enfim, a gente conhecia a Glória do Fantástico, uma jornalista profissional que é recebida e respeitada em tudo que é lugar do mundo, porque sabia também chegar com respeito em todos esses lugares. Ela não saia em notícias polêmicas, intrigas ou fofocas, o público não participava de seus relacionamentos e a maternidade não parecia ser uma prioridade para ela — que só se tornou mãe em 2009, quando adotou duas princesinhas baianas, Maria e Laura.


Eu observava e me identificava com absolutamente tudo isso, ela era o meu exemplo entre as figuras midiáticas e hoje reflito para quantos horizontes essa influência me abriu. Vejo com muita clareza a influencia de Glória Maria e seu espírito aventureiro para que eu tivesse a ousadia de conhecer 15 países e falar 4 idiomas aos 23 anos, priorizando realizações pessoais ao invés atender expectativas e pressões sociais. Meu coração nesse momento se enche de gratidão por alguém que nunca sequer vi pessoalmente, essa coisa das relações parassociais é muito louca.


Glória não foi “apenas” a primeira repórter negra da televisão brasileira, ela foi (para mim) a mais icônica apresentadora de todos os tempos. E se ela tem tanta importância para mim, nem consigo imaginar direito o quanto ela significa para as meninas pretas da nossa geração, a importância de crescer vendo uma mulher preta tão poderosa ocupando o horário mais nobre, sendo premiada por esse trabalho. Tem noção? Isso é muito grande, importante e necessário.


Mas ela foi muito mais que isso, foi uma mulher que viveu intensamente!


Ninguém sabia dos seus babados, mas até casamento secreto ela teve e só soubemos quando ela decidiu que deveríamos saber. Percebe o poder? Ela teve o controle de sua vida, guiou a si mesma para o sucesso e se manteve nele com dignidade. Poucas coisas são tão inspiradoras e poderosas quanto uma mulher que consegue ser a dona de sua própria narrativa, ainda mais fazendo isso desde os anos 70 e sendo preta, num país tão racista quanto o Brasil.


O que se sabia dela era que num dia ela pulava de um balão pro outro em pleno ar, no outro transmitia ao vivo de uma zona de guerra, entrevistava o Michael Jackson ou que fumava ganja na Jamaica dava pala em montanha-russa, rendendo alguns dos memes mais memoráveis da internet e registros históricos importantíssimos.


Agora ela se foi para mais uma aventura, aquela que todos teremos que encarar, independente de não termos a mesma coragem dela. Sua partida me deixou deixou mais um exemplo pelo qual almejar: partir com a consciência repleta de realizações. Não tenho dúvidas de que a imensurável importância, de tudo que ela representou em seus 73 anos de vida, continuará reverberando no mundo e inspirando tanta gente com seu sem fim de talento e integridade. Já pensou, ser eternizada por tantas qualidades raras, por ter coragem de viver? Isso sim é fantástico.


Se foi uma mulher linda e plena, levando consigo a completude de toda bagagem aventureira que sua coragem lhe permitiu conquistar. Para mim, Glória Maria sempre será sinônimo de excelência humana, de uma mulher que foi um dos maiores e melhores exemplos que pude escolher, juntinho de tia Nazira no patamar mais elevado de minha admiração e respeito. Se foi a mulher icônica que soube fazer de seu nome o seu destino!


Vá na paz dos gloriosos e muito obrigada por tanto, Maria<3

68199F48-FC8E-48CD-BAB8-87B14C9EE274_edited_edited.jpg

Bruna Vinsky

Produtora, formada em teatro, bacharelando em cinema e pesquisadora no campo da preparação

de elenco.

Fique por dentro de todos os posts

Obrigado por assinar!

  • Facebook
  • Instagram
  • Twitter
  • Pinterest
bottom of page