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Bruna Vinsky

Sistema Stanislavski — Parte I

Conteúdo resultado do projeto de pesquisa Estudo Sobre Preparação de Atores, que adapta o Sistema Stanislavski para a realidade do cinema independente nacional. Por mais que em alguns momentos faça o recorte de produções a nível iniciante, este material pode servir a qualquer um que se interesse ou precise de noções básicas sobre o trabalho que atores e diretores podem desenvolver para que as atuações de suas realizações alcancem o potencial máximo.


Apresentação: Este projeto foi contemplado pelo Edital

de Fomento da Juventude do Fundo de Arte e Cultura de Goiás 2018.




UMA ADAPTAÇÃO DO SISTEMA STANISLAVSKI

PARA PRODUÇÕES INICIANTES E INDEPENDENTES

DO CINEMA E AUDIOVISUAL — Parte I

texto: Bruna Vinsky


O “Sistema de Stanislavski” ficou conhecido assim por ter sido o russo Constantin Stanislavski a figura que se dedicou à sistematização de conceitos teóricos e práticos, sobre as tendências de preparação de atores que efervesceram em sua época ou sob seu trabalho como ator e diretor de teatro, rompendo então com os moldes da teatralidade clássica anterior, caricata, em busca de algo que chamou de estado criador. Ele mesmo teve o cuidado de afirmar (repetidas vezes) que não se tratava de algo criado exclusivamente por ele, mas sim do resultado de muita observação, prática e convivência com artistas talentosos e inspirados de seu tempo.


Resumidamente, se trata de um trabalho consciente, que conta com uma série de estímulos e exercícios psicológicos e físicos que facilitam o acesso à possibilidade de uma atuação consistente, de forma que as atrizes e atores consigam se colocar verdadeiramente nas circunstâncias de seus personagens, vivenciadas dentro da narrativa à qual pertencem, tornando-se capazes de reagir através de suas próprias experiências humanas, encontrando em sua memória afetiva e sugestões criativas os meios para manifestarem as ações e comportamentos dos personagens, levando em consideração seu caráter, sentimentos, objetivos e tudo mais que uma alma humana comporta e precisará ser criada para cada papel, em esforço conjunto entre direção e elenco — ou melhor ainda, contando com o auxílio direto de uma preparadora de elenco profissional.


Essa alma humana do personagem (personalidade) deverá então ser “acomodada” no que Stanislavski chamou de segunda natureza, que existirá paralelamente e será guiada pela natureza pessoal da consciência artística que a interpreta. Ou seja, o ator ou atriz em controle consciente de seu personagem, que precisa ter espaço psicoemocional próprio.


“Representar verdadeiramente significa estar certo, ser lógico, coerente, pensar, lutar, sentir e agir em uníssono com o papel. Tomar todos esses processos internos e adaptá-los à vida espiritual e física da pessoa que estamos representando é o que se chama viver o papel. Isto é de máxima importância no trabalho criador.”

(A Preparação do Ator, pág 46)


Apesar de alguém sem preparação poder sim experienciar momentos de atuação inspirada, contar com isso é muito arriscado pois (como indica a teoria freudiana da psicanálise) ninguém tem livre acesso para entrar e sair de seu próprio subconsciente quando bem entende, nem em cena nem fora de cena. Não controlamos as subcamadas de nossa psique, portanto esse tipo de inspiração é rara e imprevisível, por isso é que o sistema trabalha a atuação de forma consciente, nos possibilitando construir, conhecer e acessar a alma do personagem sempre que precisarmos.


E claro que se adotarmos essa prática consciente ainda poderemos ter os raros momentos de interpretação arrebatadora, dominada por emoções subconscientes capazes de nos fazer esquecer (momentaneamente) de nossa própria natureza, dando exclusividade à vida do personagem. O trabalho do ator criador não bloqueia isso, pelo contrário, ele pode proporcionar um campo psicoemocional fértil para que a inspiração subconsciente surja com mais frequência, sendo por fim um caminho de possibilidades para acessá-la.


A função de atrizes e atores é dar vida a seus personagens de acordo com a visão da direção sobre a narrativa, à sua maneira. No estado criador verdadeiro toda ação deve ter uma justificativa interior lógica e coerente, natural e realista de acordo com a personalidade do personagem, suas emoções, desejos, sentimentos, objetivos e circunstâncias. Ao invés de se dedicar a tal trabalho (seja pelo sistema ou outro método) muitos atores se preocupam apenas sobre como serão vistos pelo público, quando de fato deveriam focar apenas em realizar sua função essencial: fazer com que o público enxergue verdadeiramente as emoções dos personagens.


Sobre isso Stanislavski não poupou objetividade, classificou esse tipo de preocupação como a verdadeira inimiga do que chamou de arte criadora.


A maioria dos atores, antes de cada apresentação, se vestem e maquilam para que sua aparência exterior se assemelhe à do personagem que vão representar. Esquecem-se, entretanto, da parte mais importante que é a preparação interior. Por que dedicam uma atenção assim especial à sua aparência externa? Por que não põem maquiagem e uma indumentária na alma?” (A Preparação do Ator, pág 315)


Com certeza essa colocação de Tortsov (personagem autobiográfico que dirige a preparação dos estudantes, na narrativa ficcional criada por Stanislavski para instrução do sistema em seus livros) é a provocação perfeita para questionarmos a maneira como a maioria encara o trabalho de atuação.


Na época de seu estabelecimento como um novo estilo de interpretação na Rússia, no início do século XX, esse caminho foi recebido como a total renovação da cena teatral local, rompendo completamente com os clichês do estilo anterior, de aparência caricaturada, superficial, engessada e previsível. Quando o Sistema Stanislavski foi oficialmente exportado para o mundo, a partir da publicação do livro A Preparação do Ator que foi primeiramente lançado nos Estados Unidos, em 1936, o novo estilo logo alcançou status de uma verdadeira revolução mundial no campo das artes cênicas. Não à toa o sistema se mantém como a principal base teórica e prática na formação e preparação de atores no mundo inteiro até hoje, continuando como berço da atuação moderna mesmo depois de quase um século de seu lançamento.


O esquema organizado pelas indústrias de TV e cinema para expandir as possibilidades de exploração comercial para além das telas, faz com que muitos recorram à atuação atraídos pelos louros que as celebridades do ramo ostentam. Por isso os aspirantes chegam acreditando que o trabalho se trata mais da estética, da aparência física conforme os padrões de publicidade, do que realmente da habilidade de interpretar papéis de forma original, bem elaborada e crível.


Esses certamente não vão encontrar a materialização de sua fantasia sobre glamour e status na cena das produções iniciantes do cinema nacional, onde a maioria dos filmes nasce (quase que exclusivamente) da vontade de realizar, de contar uma história mesmo com pouco (ou nenhum) orçamento. Para quem atua neste recorte da realidade audiovisual, é essencial a busca intensa por atuações de qualidade, capazes de honrar diante das câmeras todo esforço das equipes por trás delas — que muitas vezes trabalham sem nenhuma expectativa financeira, sendo o êxito da produção a única forma de compensação em muitos casos.


No livro A Preparação do Ator, Stanislavski faz questão de destacar a diferença entre uma atuação fraca que, quando muito, só serve de entretenimento superficial ao público e uma atuação de real valor artístico, trabalhada a partir da compreensão das emoções do personagem, tornando-se capaz de afetar o público para além do riso fácil forçado por gestos saturados, como a clássica escorregada na casca de banana.


O público pode até rir de um clichê se ele for minimamente bem executado, mas não é justo que alguém pague para assistir uma performance rasa e batida, que já foi vista tantas outras vezes antes por ser o recurso mais fácil aos que não se aprofundam no ofício. Se um roteiro exigir um clichê, que nós atores tenhamos capacidade para representá-lo de uma forma inovadora, numa releitura fresca à nossa maneira. O que realmente atrai o público são ações particulares e únicas, verdadeiras e naturais, isso sim desperta interesse e curiosidade e empatia sobre os personagens, isso sim pode impactar de forma muito mais profunda e duradoura.


Em minha experiência, que vai desde a formação em teatro ao cinema, notei que essa percepção equivocada de atrizes e atores que chegam em busca de status e fama imediata, não é o único fator que proporciona desempenhos limitados. Também existe quem chega pelo verdadeiro desejo de atuar, com toda disposição de viver uma vida que não é a sua e vivê-la de forma crível para o público, se emprestar ao personagem, mas não conseguem fazê-lo bem (especialmente de início) pela falta de compreensão técnica sobre o trabalho de atuação, que vai muito além dos momentos de gravação de um filme.


A preparação do ator acontece antes da atuação em si: primeiro parte do estudo e práticas constantes em desenvolvimento de suas capacidades artístico-técnicas (que deve acontecer independente de ter ou não um papel em vista) e então com esforços dedicados de compreensão sobre a narrativa e o personagem que trabalhará, bom tempo antes de ir para o set.


Nunca será demais reafirmar que a responsabilidade pela atuação em um filme não é só do elenco. Por mais que os julgamentos por um desempenho capenga quase sempre recaiam sobre atores, a direção é igualmente responsável pela performance, pois é quem carrega a responsabilidade de orientar o elenco em relação à sua visão sobre o roteiro. Tanto a direção negligente quanto a direção agressiva são inimigas da boa atuação, como salienta a fala de Sir John Gielgud (ator e diretor com oito décadas de atividade e sucesso nos palcos britânicos) posta logo na apresentação da primeira parte do sistema:


“Apesar do seu egocentrismo, atores, no íntimo, são inseguros, embora possam parecer de uma confiança ilimitada [...] um diretor sem tato, que não admirem totalmente ou julguem parcial ou pessoalmente hostil, pode, com toda facilidade aniquilar-lhes a confiança própria.” (A Preparação do Ator, pág 17)


Tendo participado em mais de uma dezena de filmes nos últimos quatro anos, garanto que da mesma forma que atores chegam despreparados para os filmes, também acontece com as direções. Geralmente, no contexto iniciante, os diretores e diretoras são excessivamente interessados pela fotografia e preocupados com questões de produção.


Também é muito comum acumular funções nesse tipo de produção, e não falo apenas da dobradinha clássica de ser diretora e roteirista, mas de realmente encabeçar várias outras áreas fundamentais da realização, dependendo da escassez de mão de obra. O resultado disso? Direções “desbaratadas” pelo set (ambiente de gravação) conferindo o andamento de todas as áreas, na tentativa de garantir o melhor resultado possível para seu filme. Pode até parecer dedicação e entrega, mas se trata de um esforço problemático, motivado por imaturidade e inseguranças.


Direções despreparadas frequentemente são vistas correndo para ajudar a montar luz, conferir fotografia, ajustar algo na cenografia e tantas outras do set. Parece mais um ritual estrambólico que performam até que se sintam forçadas — pelo tempo — a finalmente começar a gravar. Enquanto isso o elenco despreparado (quando não estão tentando ajudar no caos de um set inexperiente, em alguma área que esteja beirando o colapso) fica espalhado, tomando cafezinho e proseando sobre qualquer coisa que não sejam seus personagens, numa tentativa totalmente equivocada de descontração, a fim de mascarar o nervosismo do momento de encenação que se aproxima. Quando a direção finalmente chama o elenco, as atrizes e atores já entram em cena apressados, sob a demanda de agilidade em compensação por todo atraso acumulado pelos outros.


Como não ser tomado por imenso nervosismo diante das câmeras, num cenário caótico como o descrito acima? Impossível… há menos que haja preparação!


No mundo ideal das produções profissionais e bem estruturadas, durante a fase de pré-produção ocorrem meticulosas decupagens (detalhamentos técnicos e criativos sobre cada área, abordando todo o roteiro do filme, cena a cena) e há profissionais capacitados a segui-las. Desta forma tudo já está esquematizado, então a direção madura tem ciência, interesse e disponibilidade para se concentrar no trabalho com o elenco durante as gravações, enquanto os chefes de área garantem que tudo esteja pronto conforme indicado e decidido durante o planejamento, assim só é necessário conferir e orientar sobre pequenos ajustes.


No contexto independente, mesmo sem viabilidade para o nível de organização e divisão de tarefas das grandes produções, a direção deve arranjar esse movimento de estruturação geral e detalhada na pré-produção, para ter a liberdade necessária de se dedicar ao elenco durante as gravações. Isso é o que poderá garantir que todo esforço das outras áreas para que o filme aconteça não seja desperdiçado, em função de atuações despreparadas e incapazes de transmitir os personagens do filme.


Mas atores não podem trabalhar sozinhos no set, enquanto a direção se divide entre as outras áreas? Depende. Na maioria das produções de nível iniciante os atores convidados tem pouca ou nenhuma experiência com atuação, então como vão se preparar sozinhos? Só se a direção realizar um excelente trabalho de preparação anterior ao set — sim, também durante a pré-produção, por isso essa fase de planejamento costuma (e precisa) ser muito mais longa que as gravações em si. Esse é o ideal em qualquer nível de produção, mas infelizmente é raridade no meio iniciante. E essa é a causa maior de atuações precárias, falha da direção. Se uma direção convida atores com pouca experiência ou não-atores para representar sua visão, precisa ser capaz de orientá-los a chegar lá, precisa compreender meios de conduzir uma preparação. A direção e o elenco precisam estar em completa sintonia, mantendo profundo e sensível diálogo — e a responsabilidade por essa busca de conexão simbiótica é da direção, sempre.


Não dá para pular a etapa que concentra o entendimento sobre os personagens e a capacitação mínima dos atores para essa execução, é brincar com a sorte, tal ver um carrinho de bebê descendo uma ladeira ao encontro de uma avenida movimentada, enquanto torce (passivamente) para que nenhum dos carros o atinjam. Nessa metáfora os carros são o sentido de cada ação e fala, que podem e vão atropelar atores e atrizes que não tenham trabalhado profunda e solidamente seus personagens.



ENTÃO COMO FUNCIONA ESSA TAL PREPARAÇÃO?


Agora que colocamos os pingos em alguns “is” essenciais, em relação às intenções, responsabilidades e problemáticas das produções iniciantes, podemos prosseguir para o resultado de minha adaptação do sistema para para o contexto do cinema iniciante, a partir da leitura dos livros A Preparação do Ator (1936) e A Construção da Personagem (1948). Falarei sobre ambos separada e cronologicamente, em favor da organização proposta pelo autor. As instruções de ambos os livros se entrelaçam e complementam, então caso compreendidas e praticadas separadamente, isso sequer pode ser chamado de uma prática do sistema, de acordo com o próprio autor.


Esse material é um recorte, uma proposta de compilação e adaptação do sistema para o cinema, desejando oferecer de maneira mais acessível algumas de suas ferramentas, podendo proporcionar uma aplicação básica destes saberes e assim evitar performances completamente descalibradas. São muitos os exercícios práticos e conceitos teóricos que cada livro traz, portanto, de forma nenhuma este conteúdo do projeto Estudo Sobre Preparação de Atores substitui a leitura da obra de Stanislavski.


É necessário ressaltar ainda que de tempos em tempos, a cada nova publicação, Stanislavski reformulava e corrigia um tanto de apontamentos e práticas que havia indicado anteriormente, seguindo sua máxima sobre o sistema não ser uma fórmula exata ou um método engessado, mas sim um campo de experimentações ilimitadas objetivando o alcance do estado criador, através do trabalho interior e físico razão pela qual essa pesquisa escolhe abordar apenas os dois primeiros livros nesta etapa, a fim de primeiramente facilitar a familiarização com os conceitos e a iniciação prática.


Stanislavski acreditava no desenvolvimento constante do sistema, em espelho ao próprio fluxo humano de evolução, por isso estava sempre pesquisando e experimentando em busca de novos caminhos para alcançar o estado criador, ou seja, novas possibilidades para o trabalho de preparação de atores. Essa abordagem dele em favor das transformações, somada a um certo receio sobre o peso de suas colocações, foi de fato o principal motivo de demora na publicação de seus livros. Ele realmente não acreditava num caminho único, dogmático, de fé cega, mas sim na busca por estímulos de compreensão e expressão da complexidade existencial.


“Os clichês preencherão todos os pontos vazios do papel que não estiver solidamente impregnado do sentimento vivo.” (A Preparação do Ator, pág 54)


Precisamos criar uma alma sem lacunas para os nossos personagens, a partir de nossa própria bagagem emocional e nossa imaginação. Um trabalho psicológico dedicado é o que nos protege da instabilidade cênica e da falta de inspiração. Mas nunca devemos iniciar o trabalho de preparação focando diretamente nas emoções do personagem, precisamos começar pela compreensão das causas por trás dessas emoções.


Se um roteirista tentasse descrever tudo sobre as complexidades interiores de cada personagem ou mesmo sobre as circunstâncias da narrativa, teríamos como resultado livros extensos no lugar de roteiros e ao invés de contribuir, isso tolheria nossa liberdade de criação. O ideal é um meio termo, roteiros com algum grau de detalhamento, mas na maioria das vezes nem há descrições ou são limitadíssimas. Então, somos nós mesmos enquanto elenco e direção, que precisamos preencher todas essas lacunas com nosso trabalho de imaginação e pesquisa.



IMAGINAÇÃO


Não existe atuação sem imaginação e a imaginação precisa de estímulos para fluir, não é possível se dizer mentalmente “ei, imaginação, me dê qualquer ideia" e esperar que boas ideias surjam em nossa mente como num passe de mágica. Precisamos estimular a imaginação, por exemplo, se nos propormos a compreender os sentimentos de uma árvore, não vamos conseguir isso apenas nos perguntando “como uma árvore se sente?”.


Precisamos proporcionar circunstâncias interessantes à imaginação e o sistema nos dá os cinco questionamentos que servem para isso: quem? quando? por quê? onde? como? Memorize essas cinco perguntas imprescindíveis como cada dedo de uma mão, pois elas são as chaves de ignição da imaginação.


QUEM: quem é a pessoa, ser ou objeto interpretado?

QUANDO: em que época? a que hora do dia ou da noite?

POR QUÊ: qual o motivo para estar onde se está?

ONDE: em que lugar? em qual realidade?

COMO: quais as circunstâncias?


Antes de se perguntar como uma árvore se sente, precisamos saber tudo sobre ela, seja a partir de um texto recebido ou imaginando livremente. O ponto é que precisamos ser capazes de responder qualquer pergunta sobre nossos personagens, mesmo os improvisados a serviço da experimentação avulsa. Treine sua imaginação com frequência, o exercício é o que naturaliza a prática. Vou demonstrar com a ideia da árvore, que também é usada no livro, só que adaptando à minha maneira, usando minha própria imaginação:


Sou um ipê roxo (quem), na realidade da década de 30 (quando), outras árvores foram derrubadas mas eu fui poupada pela beleza das minhas flores e por servir de sombra (por quê) para mulheres que vem lavar roupas na beira da cachoeira em que estou plantada (onde), mas hoje estou correndo o risco de ser derrubada para que a minha madeira seja usada para construir uma mesa para os donos das terras (como).


Agora que já tenho consciência sobre a minha realidade básica enquanto árvore, já posso imaginar como me sentiria sob estas circunstâncias, em que alguém se aproxima e se prepara para me derrubar... sinto a tensão, mas ao mesmo tempo me entrego a me sentir viva, talvez pela última vez, desde minhas profundas raízes entranhadas na terra fresca beirando a cachoeira aos fartos galhos que balançam com o vento, que trás a brisa fresca da queda d'água.


Prometo que se duas pessoas atuarem lado a lado como árvores e uma trouxer toda essa carga dramática da imaginação, enquanto a outra só pensa “vou só ficar aqui parada como uma árvore”, a atuação da primeira terá uma substância e expressão incomparáveis com a superficialidade da segunda. Somos seres sensíveis e empáticos, capazes de dizer se um amigo não está bem mesmo antes de saber seu problema. Transmitimos emoções uns aos outros, na atuação não pode ser diferente. Uma pessoa encenando como uma árvore preenchida de consciência e emoções pelas suas circunstâncias, será percebida diferente da outra pessoa que represente uma árvore vazia.


“Toda criação da imaginação do ator deve ser minuciosamente elaborada e solidamente erguida sobre uma base de fatos.” (A Preparação do Ator, pág 103)


Por isso que, de acordo com o sistema, nunca podemos iniciar um papel (ou exercício) pensando diretamente nas emoções, primeiro precisamos pesquisar ou imaginar com minúcia as particularidades das circunstâncias vividas pelos personagens. Só depois de entender as condições, é que se pode chegar a compreender e sentir de fato suas emoções. Todo esse trabalho emocional, nada mais é que um profundo exercício de empatia, de se colocar no lugar do personagem.


Não podemos obrigar nossas mentes a se convencerem definitivamente de algo que não é fato, apenas impondo a ela que somos uma árvore. Para nos imaginarmos como qualquer ser ou coisa, os “ses” imaginários são a chave. “E se eu fosse uma árvore em determinada situação, como me sentiria?”. Basta proporcionar suposições criativas lógicas e interessantes, que a força criadora irá fluir na mente artística e com prática e aprofundamento será possível chegar ao estado criador, de onde se sente e reage com verdade. O “se” serve para nos colocar em situações e estados que não conhecemos, funciona como uma ponte.



Dispositivo de Improvisação


Antes de indicar o primeiro exercício, apresento uma ideia muito simples adaptada de minha experiência com teatro de improviso e seus jogos, que será útil para a prática dos exercícios deste estudo com facilidade e espontaneidade, de forma solo. Precisaremos de caneta (ou impressora), papel, tesoura e três pequenos recipientes.


Primeiro indico três categorias básicas essenciais: emoções, sentimentos positivos e sentimentos negativos.


Sinta-se livre para usar sua própria escolha de emoções e sentimentos e também para incrementar o dispositivo de acordo com sua vontade e necessidades, incluindo outras categorias que sirvam para facilitar a experimentação nesse tipo de prática avulsa de exercícios.

link para um documento com minha sugestão de listas de emoções e sentimentos para usar nessa prática


(link contendo sugestões de emoções e sentimentos, para montar seu dispositivo).


Para o primeiro exercício a seguir, criaremos também a categoria “objetos inanimados”, para seguirmos na linha do exemplo anterior, aquele da árvore. Crie uma lista de objetos a seu critério, mas particularmente penso ser bem interessante manter no prisma da natureza, pois a vida e substância da matéria orgânica pode ser muito mais atraente para nossa imaginação, instigando com mais fluidez nossa capacidade de concepção artística.


  • EXERCÍCIO 01: Sorteie um objeto no dispositivo de improvisação e se imagine sendo ele (como visto anteriormente, com o exemplo da árvore) a fim de descobrir sua personalidade, circunstâncias e emoções, usando os cinco questionamentos disparadores da criação através da imaginação.


O sistema indica que treinemos inicialmente com objetos inanimados, porque sem a possibilidade de movimentos físicos podemos concentrar apenas nos aspectos internos. Quando a ação não requer ou não permite reação externa, a emoção interna verdadeiramente sentida é suficiente.


“Se pronunciarem alguma fala ou fizerem alguma coisa mecanicamente, sem compreender plenamente quem são, de onde vieram, por que, o que querem e para onde vão e o que farão quando chegarem lá, estarão representando sem a imaginação. Esse período, quer seja curto, quer longo, será irreal e vocês não passarão de autômatos, de máquinas às quais se deu corda.” (A Preparação do Ator pág 104)


O que querem? Essa pergunta também é muito importante, pois daí saberemos que objetivos o personagem persegue. Tanto neste quanto em outros textos e trabalhos de Stanislavski, ele reforçou a importância de descobrirmos pela leitura do texto o que o personagem quer, qual o seu objetivo. Responder a esta pergunta é fundamental para o ator que vai representar esta vida, para que o faça de modo crível e coeso. Se o texto não é suficientemente claro para responder a esta pergunta, cabe ao ator usar a imaginação para preencher as lacunas e respondê-la, sem se afastar das circunstâncias propostas pelo autor e da visão da direção.


Atrizes e atores precisam pensar e imaginar, como naturalmente se faz na vida, para então viver um personagem com verdade. Por exemplo, se planejarmos ir ao banco para pedir um empréstimo, não vamos nos preparar apenas escolhendo uma roupa que cause boa impressão, Vamos também pensar cuidadosamente nos argumentos que diremos à gerência, para convencê-la da quantia que precisamos tomar emprestada. Pensamos antes de agir, para que nossas interações sejam coesas às nossas intenções. Da mesma forma, diretores e diretoras precisam desenvolver uma visão detalhada sobre como desejam que o filme seja e como esperam que seus atores se comportem em função da narrativa — daí a necessidade de trabalharem juntos, para estarem em sintonia sobre a atuação em representação do papel.



CONCENTRAÇÃO DA ATENÇÃO


Para que atrizes e atores não se sintam intimidados pela presença e movimentação da equipe de gravação e produção, é preciso estarem interessados e focados na mise en scène (que quer dizer, a grosso modo: tudo que está enquadrado pela câmera como parte da ação da cena). Todo ator que não esteja profundamente concentrado sentirá um frio na barriga quando se posicionar diante das câmeras. Nesta hora, sem o preparo adequado, todo tipo de preocupações pessoais, alheias ao personagem, passarão por seus pensamentos acelerando seus batimentos e instigando um processo de nervosismo que será certamente um obstáculo para a arte criadora, podendo até levar a estados de histeria ou paralisação, dependendo do nível de estresse vivenciado.


O sistema propõe a escolha do que chama de objeto mais próximo, para auxiliar na concentração. Que se escolha algo perto da posição inicial em cena, algo que nos atraia e concentre na vida do personagem. Se conseguirmos nos conectar com um objeto dessa forma, pelo olhar (pode até mesmo surgir a necessidade de tocá-lo, o que é totalmente natural por se tratar de um impulso humano verdadeiro, se o gesto for permitido pela direção não há porque conter tal impulso orgânico) estaremos ancorados ao personagem — ao invés de à deriva num mar de ansiedades alheias ao papel.


  • EXERCÍCIO 02: Escolha um objeto de cena e foque nele, pelo máximo de tempo possível, desenvolvendo uma história imaginária para ele.


Por exemplo, se a cena se passar no quarto do personagem enquanto espera alguém chegar para uma conversa, escolha um objeto sobre o qual possa criar alguma narrativa imaginada, que se relacione e acrescente ao que está prestes a acontecer em cena. O quarto de uma pessoa costuma ser repleto de objetos pessoais, com valor sentimental. Um anel que o departamento de arte tenha deixado sobre a cômoda, por exemplo… logo imagino ser um anel que a pessoa que está para chegar (na cena) esqueceu ali, algum tempo atrás, depois de sair apressada em meio a uma discussão que tiveram. Compreende?


Dessa forma estaremos conectados com o personagem, enquanto tudo em volta se ajusta para iniciar a gravação. Repita isso entre um take e outro, sempre tentando se manter conectado com seu personagem de alguma forma, permitindo apenas pensamentos relacionados a ele e às circunstâncias presentes.


“Uma língua tagarela e mãos e pés que se movem mecanicamente, não substituem um olhar perspicaz. Os olhos do ator que olha para um objeto e o vê atraem a atenção do público, e por isso mesmo indicam-lhe para onde devem olhar.” (A Preparação do Ator, pág 113)


Portanto esse objeto de auxílio que facilite a concentração, de forma nenhuma pode ser qualquer coisa que não se relacione imediatamente ao personagem, essa suposição precisa ser cabível dentro da narrativa. Então nada de encarar algum equipamento qualquer do set que não pertença diretamente à mise en scène, pois isso não irá lhe ajudar. Para garantir que consigamos essa conexão com algum objeto no momento da cena, é indicado um treino anterior de foco (exercício naqueles momentos de práticas avulsas, independentes de termos ou não um personagem) de forma a naturalizar esse reflexo de concentração, para que se torne um gesto orgânico durante as filmagens.


  • EXERCÍCIO 03: A qualquer momento (em casa ou outro ambiente possível) foque o olhar atento sobre um objeto por 30 segundos, memorizando bem suas características e depois, com a luz apagada ou olhos fechados, tente descrevê-lo detalhadamente (sem vê-lo). Então repita isso com outros objetos, diminuindo o tempo de observação, fazendo com que a mente esteja capaz de registrá-los cada vez mais atenta e rapidamente.


O objetivo é que com isso possamos olhar para as coisas de forma a realmente vê-las, nos colocando totalmente presentes, física e mentalmente, dentro do círculo de atenção (área de enquadramento) em que estivermos, do qual precisamos estar apropriados, alcançando o que o sistema chama de solidão em público. Conscientes de si mesmos (personagem) e do ambiente, seu espaço e objetos (cenário) as atrizes e atores alcançam um estado de concentração e presença, que lhes colocam numa experiência verdadeira.


Claro que se a cena for numa festa ou local público grande ou aberto, não é possível ter ciência absoluta de tudo. Nesses casos podemos nós mesmos delimitar mentalmente o nosso círculo de atenção, englobando apenas o que é imediatamente necessário, que contribua ou esteja ligado com nossa ação na cena.


Estes exercícios de foco dizem respeito à atenção exterior, induzida pelo detalhamento das características físicas de objetos, do entorno. Agora vem a parte da atenção interior, dos sentidos, emoções e sentimentos, da busca pelo significado psicoemocional da atenção exterior através da imaginação e subtexto. Enquanto atrizes e atores precisamos ser observadores natos, atentos à vida em todos os seus aspectos. Lugares, pessoas, objetos, sensações, sentimentos, expressões… TUDO!


  • EXERCÍCIO 04: Detalhar verbalmente objetos, destacando suas qualidades e sensações que nos trazem ao olhá-los. Por exemplo, uma flor traz muitas qualidades sutis: sua cor, seu perfume, seu estado de vida. O que sente ao olhar para ela? o que ela inspira? tanto de positivo quanto negativo, beleza e feiura? Repita esta observação declamada sempre, com um objeto de cada vez.


Uma flor bonita e perfumada pode causar alergias em alguém e para essa pessoa será percebida como algo ruim, então cada um percebe o mesmo objeto de forma diferente, em acordo com suas experiências e condicionamentos pessoais. Por isso que a expressão artística na atuação tem sempre potencial para ser original, pois cada um pode trazer sua perspectiva própria, totalmente única.


Este é só o começo, o início do despertar da imaginação. Há muitas realizações filosóficas sobre a própria existência e essência psicoemocional humana e precisamos estudá-las. Afinal, quando se fala em construir um personagem, se trata de juntar pedaço a pedaço uma vida, compondo sua personalidade e realizando suas intenções por trás das ações e falas, seu passado e tudo mais que o forma.


Nessa narrativa dos livros do sistema, criada pelo autor (Stanislavski) com base em sua experiência real como diretor de teatro, vemos uma progressão inegável após cada punhado de substância que os estudantes absorvem dos novos exercícios, o método e a filosofia naturalista por trás dele se provam até aos que inicialmente praticam com resistência, apegados à zona de conforto dos maneirismos e cacoetes manjados do palco. Confio nessa instrução, pois o mesmo me aconteceu sempre que aprofundei minha compreensão sobre o trabalho da atuação consciente, tanto no teatro quanto nas pesquisar individuais.


Para praticar os saberes e exercícios aqui adaptados ao cinema e também poder medir sua evolução, é interessante escolher uma cena simples de trabalho para ser usada sempre que necessária na prática avulsa — aquela que deve ser constante, entre um trabalho e outro, em afinação de nosso potencial de atuação. Se a prática constante for solo, a atriz ou ator deve escolher uma cena em que só um personagem apareça, afinal, o sistema gira em torno da busca por uma experiência verdadeira, então não podemos simplesmente fingir estar em cena com colegas imaginários. Não estamos buscando o fingimento, mas sim a vivência real.


Pode ser uma cena qualquer que já exista, há muitos roteiros disponíveis online, até mesmo de filmes famosos já produzidos — nesse caso se atente para não copiar a interpretação do filme, melhor nem ver a cena produzida e se basear apenas na leitura do roteiro. Busque a sua própria expressão do personagem que escolher. O importante é que seja um personagem em ação simples, não escolha de cara algo fantástico ou muito dificultoso, que demande extensa memorização como um monólogo. Comece por um contexto que facilite a crença de sua mente sobre a ação. Uma ginasta não tenta dar um salto mortal em seu primeiro dia de treinamento, primeiro pratica o básico e depois progride para saltos maiores. Sigamos este exemplo, escolha ou crie uma ação simples para esta cena de trabalho.


Com isso, siga praticando com constância os exercícios de imaginação e concentração, criando histórias imaginadas sobre pessoas e objetos aleatórios, usando o dispositivo de improvisação sempre que for útil... dessa forma estaremos afiados quando precisarmos aplicar tais ferramentas na nossa preparação em criação dos personagens, para um filme ou série.



DESCONTRAÇÃO DOS MÚSCULOS


Como já mencionado, a tensão nos afeta negativamente, tornando-se visível em nossa expressão facial, voz e movimentos. O sistema garante que essa tensão tem efeito destruidor para a emoção sensível de atores, causando bloqueios e esquecimento das falas.


“Enquanto se tem essa tensão física é impossível sequer pensar em delicadas nuanças de sentimento ou na vida espiritual do papel. Por conseguinte, antes de tentar criar qualquer coisa, vocês têm que pôr os músculos em condição adequada, para que não lhes estorvem as ações.” (A Preparação do Ator pág 133)


A auto-observação deve se tornar um hábito automático para nós, especialmente nos picos de emoção dos personagens, onde se tende ao exagero. É impossível se livrar totalmente da tensão e por isso mesmo é necessário continuar tentando aliviá-la sempre, de formas naturais, em exercício constante dentro e fora de cena, em todos os ambientes cotidianos possíveis incorporando essa natureza de autocontrole, para que a tensão deixe de atrapalhar a criação.


  • EXERCÍCIO 05: Deitar-se numa superfície dura e tomar consciência dos músculo que sente tensionados, tentando relaxar esses grupos musculares, buscando distribuir todo o corpo pela superfície, com o auxílio de inspirações e expirações generosas, mas sem forçar demais, apenas o suficiente para o alívio físico — hiperventilação pode causar tonturas, quedas de pressão e até desmaios, o objetivo aqui é o relaxamento, qualquer forçação nesse momento vai contra a proposta.


Experimente este mesmo exercício em outras posições, em diferentes níveis: sentado, sentado sem apoiar a coluna, de cócoras e etc. Concentre a tensão apenas nos músculos essencialmente necessários para se manter na posição adotada, relaxando as demais musculaturas. Experimente com seus centros de gravidade e pontos de equilíbrio, até ser capaz de se equilibrar somente em uma perna, conseguindo deixar a outra e todo o restante do corpo relaxado, por exemplo.


Essa é uma proposta de busca por naturalidade, para que nos comportemos em cena com o mesmo despojamento que fazemos na vida pessoal. Se observe quando sentar confortavelmente em casa, quando andar na rua, tome ciência não apenas da posição e postura, mas também do estado interior dessa naturalidade, da respiração, do nível de relaxamento ou tensão naturais àquele momento. Memorizar o estado interior de posturas físicas relaxadas, pode ser um estímulo a mais para relaxarmos em cena, se conseguirmos acessar tal memória e permitir que ela nos guie para um estado parecido com aquele que a gerou em primeiro lugar.


Não sentamos em nossas casas pressionados pela preocupação de como estamos sendo vistos, e assim deve ser em cena. Novamente, é sobre se conhecer profundamente, não sobre se imitar mecanicamente. Imagine situações de reações físicas para se perceber e se perceba também durante as ações cotidianas, como apanhar uma fruta de uma árvore, espantar uma mosca da comida, acenar para alguém, entre tantas outras movimentações possíveis. Sempre lembrando de usar apenas os músculos necessários e relaxando os demais, pois isso transforma a pose em ação e engaja os músculos corretos, de forma verdadeira, livre dos enrijecimentos artificiais que surgem quando nos ordenamos uma postura sem a preparação correta.


O sistema aponta 3 momentos da postura em cena:


“Primeiro: Tensão supérflua, que vem, inevitavelmente, a cada nova pose adotada e com a excitação de executá-la em público. Segundo: o relaxamento automático dessa posição supérflua, sob a ação do controlador. Terceiro: a justificação da pose, quando por si mesma ela não convence o ator.” (A Preparação do Ator, pág 141)


Quando atrizes e atores se concentram na postura ao invés da motivação, do estado interior que a impulsiona, então o corpo é tensionado e a verdade do movimento se perde.


Toda atenção deve ser voltada à situação presente. O personagem é um ser senciente (precisa ser!) então além de uma situação narrativa crível para seguir, é necessário também compreender totalmente os desejos, objetivos e motivações (subtexto) do personagem, porque só assim se consegue reagir fisicamente com a verdade e a coerência que tornarão o gesto interessante e compreensível ao público. Não é possível fazer isso corretamente sem entender o “por quê” da ação. Um corpo cênico rígido é facilmente percebido e dá ao público a impressão de que a própria alma do ator é engessada.


Os bebês com poucos meses, que nem mesmo conseguem tensionar o suficiente para se erguer (já que antes estavam flutuando em líquido amniótico por 9 meses) são um ótimo exemplo de relaxamento. Já os felinos são um bom exemplo de movimentação que usa apenas os músculos necessários, pois empregam somente a energia e musculaturas precisamente necessárias à ação que executam. Observe comportamentos. A observação é uma das partes inegociáveis do ofício de atuação.



Nessa parte do livro A Preparação do Ator, Tortsov pede para que um de seus estudantes tente levantar a lateral de um piano clássico bastante pesado, e que durante o esforço de manter a quina suspensa resolva uma conta de multiplicação. Quando o estudante não consegue realizar o cálculo e desiste soltando o instrumento, o diretor diz o seguinte sobre a importância do relaxamento:


“Se já é difícil fazer uma simples multiplicação enquanto erguemos a quina de um piano, quão menos possível será exprimir as delicadas emoções de um papel complicado.” (A Preparação do Ator, pág 146)


Cada pessoa tem gatilhos próprios para o despertar de sensações, sobre relaxamento não é diferente. Caberá a cada atriz e ator a investigação sobre as práticas que lhes sejam mais favoráveis para um estado de relaxamento. Exercícios de respiração e meditação são os mais comuns, mas não são os únicos. A escolha dos métodos de relaxamento é bastante particular, experimente e escolha as suas.



UNIDADES E OBJETIVOS


A decupagem (detalhamento técnico sobre o roteiro) inicial que o sistema indica para compreensão do papel é dividida entre unidades e objetivos. Essa divisão geral da narrativa em unidades servirá de trilho e deve ser feita de forma ampla, sem demasia de detalhes, apenas considerando os pontos essenciais sem os quais o filme não existiria. Nesse momento um detalhamento excessivo é indesejado pois leva a uma memorização e interpretação mecânicas, opostas à proposta de experiência orgânica do sistema.


  • Unidades grandes: divisão geral, principais acontecimentos.

  • Unidades médias: subdivisão de cada unidade grande em mais unidades.

  • Unidades pequenas: detalhamento de cada unidade média em unidades menores.


Adaptando um exemplo metafórico dado por Stanislavski: Imagine a decupagem como uma pizza. É impossível comer uma pizza inteira em uma só mordida. Primeiro cortamos ela ao meio, resultando em dois grandes pedaços (unidades grandes). Depois cortamos nas diagonais em “x”, dobrando a quantidade de pedaços (unidades médias), então nos servimos de uma fatia e a cortamos em pedaços ainda menores (unidades pequenas), para só então saboreá-la, pedacinho a pedacinho. Para “degustar” uma narrativa da forma correta também precisamos dividí-la, pois se tentarmos engoli-la toda de uma vez não conseguiremos, mesmo as fatias são grandes demais para comer de uma vez, se tentarmos corremos o sério risco de nos engasgar.


Escolhi o filme “Náufrago” para exemplificar como deve ser feita essa divisão em três etapas:




Além do propósito criativo, essa estrutura também nos serve de “mapa mental”, para que possamos visualizar e navegar por toda a narrativa de forma mais prática durante o processo de criação do papel.


O objetivo da divisão em unidades não é incluir cada detalhezinho do roteiro, mas sim nomear as partes e eventos centrais mais importantes. Stanislavski alertou para que evitemos o exagero e afirmou que quanto menor o número de divisões, mais facilidade teremos para conduzir o papel num fluxo natural e orgânico. Mas não há regras sobre a quantidade de unidades grandes, médias ou pequenas, elas precisam ser adequadas ao personagem e a quem o interpreta. Duas pessoas podem decupar o mesmo personagem e obter resultados bem distintos, pois cada um irá dividir e nomear as partes da forma que lhe pareça melhor.


Voltando à analogia da pizza, seria agradável comer só a massa pura e seca? Não mesmo. A pizza precisa de um bom molho de tomate (sugestão imaginada), queijo mozzarella (“ses” mágicos e circunstâncias dadas), rodelas de tomate (ajuste da direção), depois salpicar orégano por cima (toque pessoal da atriz ou ator) e talvez algumas azeitonas (contribuição de colegas de cena).


“É isto o que tem de fazer com os pedacinhos do papel: ensopá-los cada vez mais no molho das circunstâncias dadas. Quanto mais seco for o papel, mais molho será necessário.” (A Preparação do Ator, pág 150)


Da mesma forma que as unidades se dividem e subdividem, também deve acontecer com os objetivos. Objetivos são gatilhos de criação que apontam a direção correta da atuação, permitindo confiança e sustentação quando identificados corretamente. Devemos aprender a selecionar os objetivos certos, aqueles realmente profundos em relação às motivações do personagem. Na verdade, a essência primordial da divisão do roteiro em unidades é justamente servir de mapa para conhecermos os objetivos criadores, momento a momento. Cada unidade carrega um objetivo próprio em si. Ainda usando Náufrago, cheguei a essa divisão de objetivos:




Este é um dos processos que precisa ser feito entre elenco e direção, de forma atenciosa e pacientemente, para garantir que a interpretação das atrizes e atores estejam alinhadas sobre seus personagens e de acordo com a narrativa sob a visão da direção. O sistema indica uma lista para identificação de objetivos corretos, que adaptei da seguinte forma:


  1. Clara e precisamente definidos, indubitáveis;

  2. Ativos, que motivem o personagem a seguir em frente;

  3. Absolutamente dedicados à experiência do personagem;

  4. Impulsionam a criação artística da vida interpretada;

  5. Verdadeiros e críveis, tanto pelo elenco entre si quanto pelo público.

  6. Ter qualidades atrativas e comoventes, que provoquem empatia;

  7. Valorosos e substanciais, totalmente coerentes com o papel.



O sistema sugere ainda que existem três categorias de objetivos:


  1. Externo: estritamente corporal, vazio de sentimentos.

  2. Rudimentar: traz um pouco de emoção, porém muito superficial.

  3. Psicoemocional: emoção profunda e estruturada pelo estado interior.


Esta última é a que se busca com esse processo de compreensão das unidades e objetivos, pois provoca uma experiência verdadeiramente empática sobre a essência do personagem. Num filme bem executado, todos os gestos e ações têm importância, seja para afirmar o caráter dos personagens ou pelo curso da trama, logo precisam ser desenvolvidos sobre objetivos psicológicos profundos, garantindo que os gestos transmitam as intenções, desejos, emoções e conflitos do papel de forma correta. É assim que cumprimos nossa missão de apresentar a vida de nossos personagens ao público, esse é o nosso trabalho enquanto atrizes e atores.


No teatro levam-se bons meses de ensaio para a montagem de uma peça. Por que o cinema deveria relegar inteiramente essa prática? Decupagens e ensaios servem justamente para que os objetivos criadores corretos sejam encontrados e incorporados através da compreensão do texto e da descoberta de expressões condizentes. Ao se descobrir o objetivo de cada unidade, o sistema recomenda nomeá-lo usando um verbo ao invés de um substantivo, de forma que o primeiro impele à ação.


Com o roteiro em mãos para visualizar a trajetória de nosso personagem, decupamos para incrementar sua personalidade e lhe representar de forma artisticamente interessante, usando ferramentas de provocação da imaginação como os cinco questionamentos. A decupagem das unidades e objetivos é a essência do trabalho criador, a partir do qual surgem expressões externas apropriadas e naturais, de forma orgânica e cheia de substância... não se pode jamais dispensar o trabalho da decupagem, esta é a base máxima de compreensão sobre o papel e a pedra fundamental de nosso trabalho interno — que será melhor explanado na segunda parte deste texto, baseada no livro A Construção da Personagem.




FÉ E SENTIMENTO DA VERDADE


Atuação é essencialmente o trabalho de representar um papel de forma crível, fazendo com que o público se interesse por conhecê-lo e acompanhá-lo. Para cumprir com essa missão, temos que elaborar uma interpretação interessante e coesa para nossos personagens, e isso é possível quando buscando compreender quem são, o que sentem e o que desejam. Conforme conhecemos nossos papéis e acreditamos neles, vamos lhes dando alma, uma vida completa, tanto psicoemocional quanto fisicamente. Na prática do sistema, essa vida será representada utilizando nossa biblioteca emocional (preparação interna) e expressão gestual (preparação externa). Este processo constitui a famosa fé cênica, de ter crença em nossos personagens a ponto de convencer os outros a também acreditarem neles.


Essa caminhada rumo ao sentimento de verdade precisa ser equilibrada, pois a crença com fervor fanático e excessivo pode provocar uma atuação exagerada. A indicação de Stanislavski é diminuir 90% da intensidade das expressões e essa recomendação não poderia ser mais adequada para a realidade do cinema.


Enquanto na atuação para teatro os gestos precisam ser percebidos desde a primeira até a última fileira da plateia, no cinema é o oposto. Todos os gestos são vistos com facilidade, amplificados por planos e enquadramentos programados para exibir precisamente as feições essenciais à construção narrativa. Então, se para o teatro já se deve evitar o exagero que deixa a atuação canastrona, no cinema esse cuidado deve ser levado ainda mais a sério. O mesmo deve ser considerado sobre a voz, pois há captação aproximada, diferente do teatro onde se tem grande distância entre plateia e palco. Precisamos estudar muito esta relação entre expressões, voz e equipamentos de captação.


Quando atores de teatro, que nunca tiveram contato com o trabalho de câmera, são convidados a atuar em um filme, há grandes chances da atuação resultar inadequada. Às vezes é um processo bastante melindroso convencer atores de teatro, talentosos no palco, de que é preciso todo um esforço de adequação para que sua atuação não resulte caricata nas telas. Superada a barreira da vaidade, é muito possível extrair excelentes atuações cinematográficas de atores experientes de teatro e até mesmo de atores amadores.


  • EXERCÍCIO 06: escolha um momento da cena de trabalho para encenar um trecho dela gravando, primeiro com a câmera posicionada a uma distância de 5 metros em relação a você, depois repita o mesmo trecho da cena só que dessa vez posicionando a câmera a apenas 1 metro de distância, por último posicione a câmera a 50 centímetros de distância (enquadrando o rosto) e repita novamente o mesmo trecho. É importante tentar repetir a cena com a mesma intensidade emocional e gestual para as diferentes distâncias, o mais parecido possível com as vezes anteriores, para facilitar a comparação da visibilidade gestual entre as diferentes captações.



Essas três gravações simples não requerem equipamento profissional de filmagem, qualquer câmera de celular já será suficiente para compreender a variação que as diferentes distâncias provocam na impressão das atuações. Analise os resultados se atentando à sua expressão facial e perceba que quanto maior a distância, menos evidentes ficam os gestos. Num filme, até mesmo quando o personagem é gravado de uma perspectiva distante da câmera a edição pode intervir e aproximar, trazendo um plano detalhe de alguma expressão a fim de incrementar a dramaticidade da ação, caso necessário. Essa possibilidade de edição é algo impossível no teatro, não há plano detalhe pois a distância entre público e palco não se altera, esse é um recurso exclusivo à linguagem audiovisual.


Como o ator precisa estar sempre desenvolvendo suas habilidades, o ideal é que artistas de teatro (que desejem trabalhar no cinema) incluam essa adaptação em sua rotina de práticas, seja amparado por uma profissional de preparação ou sozinho, contanto que aconteça bem antes de se lançarem diante das câmeras. Distâncias, ângulos, intensidade de expressões. Quando isso não acontece e o filme não conta com um bom empenho na preparação do elenco, o mais provável é que a atuação se dê de maneira improvisada, imprecisa e insegura, atrapalhando as gravações e afetando negativamente o resultado final. Esse cenário prevê exaustivas repetições de cada plano e cenas, o que além de bastante desgastante (não só para as atrizes e atores, mas para toda equipe) também afeta o orçamento.


O que é melhor, tentar acertar pela repetição exaustiva diante dos olhares de uma equipe inteira no set — e mesmo assim correr o risco de não alcançar um bom nível de interpretação — ou desenvolver um trabalho contínuo de aprimoração, de forma reservada e devidamente amparado pelas instruções de preparadores ou mesmo em estudos independentes? Acredito piamente na segunda. Muito melhor já estar preparado e seguro quando as oportunidades no cinema surgirem, do que tentar a sorte no set. Atuação é um serviço muito sério, não dá para contar só com a sorte.



Senso crítico útil:


O trecho anterior não é uma caça aos profissionais do talhado, trabalhar com atores é um processo melindroso de modo geral, mas em especial com os despreparados, obviamente. É extremamente delicado corrigir o elenco durante as gravações e arriscar comprometer todo o trabalho ao afetar o estado interior e a autoconfiança das atrizes e atores. Uma direção inexperiente, impaciente ou agressividade, pode causar um estado de saturação e até catatonia sobre os atores, até os mais experientes podem se frustrar ao sofrer tentativas inadequadas de ajustes. Por outro lado, uma direção sensível e madura pode extrair o melhor de um ator e até resgatá-lo em momentos de nervosismo e desconexão com o papel.


À parte de abordagens problemáticas, o sistema destaca como sendo vital a importância de que o ator esteja aberto a escutar a opinião da direção sobre seu desempenho. O ator que entende que é parte do seu trabalho ser ajustado pela direção, é chamado de “fácil de trabalhar” e dificilmente ficará sem convites para atuar, por isso muitas direções repetem atrizes e atores com quem já trabalharam antes. Em gravações iniciantes, numa situação de saturação em repetição de uma cena, até mesmo um assistente sem muita noção pode se sentir impelido a fazer recomendações aos atores. Isso jamais pode acontecer, jamais! Somente a direção carrega a responsabilidade definitiva sobre o filme, afinal, é a sua visão sendo realizada e todos precisam respeitá-la, tanto atores quanto os demais membros da equipe. Os atores precisam estar abertos aos pitacos, sim, mas somente de quem está em posição para tal.


Para efeito positivo, uma pessoa que possa criticar a atuação (capacitada e encarregada de dirigir ou preparar o elenco) deve ser sensata, calma, ponderada e compreensiva sobre o estado dos atores, que não se manifeste por minúsculas ações imperfeitas — toda atriz e ator apresenta variações de níveis em sua atuação, mesmo que seja entre bom e ótimo, a interpretação sempre tem seus altos e baixos. Não se deve implicar por isso. Dependendo do momento e do estado dos atores, às vezes é preciso deixar passar até alguns momentos de atuação fraca ou amena. A direção deve ter maturidade suficiente para não transparecer sua frustração quando a performance do elenco não alcançar o esperado, pois não é isso que vai trazer soluções, muito pelo contrário.


Atores precisam cultivar sensibilidade extra para dominar a sensível arte de perceber (dos colegas de cena) e expressar emoções (de seus personagens). Por conta disso, para atores é muito fácil perceber frustrações ao seu redor, mais ainda a frustração da direção, com quem se relacionam diretamente durante as gravações. Imagine estar em cena sob o olhar nitidamente desgostoso de quem literalmente precisa validar o seu trabalho? Isso pode facilmente custar o equilíbrio cênico até de um ator experiente. Não é com expressão carrancuda que se prepara ou corrige uma atuação, esse não é o caminho, uma direção competente favorece seu elenco ao invés de atrapalhá-lo.


O sistema indica que antes de apontar os pontos negativos se deve pontuar os momentos positivos e convincentes da atuação, dessa forma os atores têm a oportunidade de entender o que funcionou e se adequar sob aquele estado criador e através dele fluir sobre o restante, com a segurança e autoestima de já ter sido capaz de desempenhar da forma certa. Sobre os momentos em que a atuação realmente não esteja funcionando (mesmo após o apontamento de acertos) deve-se dizer com objetividade e sinceridade, porém de forma considerada e jamais de maneira grosseira ou depreciativa.


Na narrativa de preparação da turma que ilustra o sistema, Stanislavski apresenta uma abordagem divertidíssima de correção dos atores. Seu alter ego, Tortsov, destaca de maneira muito bem humorada as mumunhas e cacoetes clichês dos atores durante os exercícios, pois esse foi um grau de intimidade que construíram dentro da relação profissional, mas sempre de forma digna, respeitosa e até afetuosa. Bom humor e zombaria são coisas totalmente diferentes, jamais se deve fazer piadas sobre o trabalho dos atores, a menos que espere que se ofendam e não dêem o melhor de si em cena. Enfim, é muito mais fácil confiar em ser guiado por uma direção sensata, respeitosa, acolhedora, simpática e terna, do que por uma direção desrespeitosa, grosseira, fria ou carrancuda. As diretoras e diretores precisam ter uma boa relação com as atrizes e atores de seus filmes, essa é uma peça chave do quebra-cabeça em construção de atuações de alto nível.



Inação dramática:


Na vida, situações impactantes podem nos levar a verdadeiros estados de choque. Então, por ser algo natural do ser humano, isso também deve constar em nosso acervo psicoemocional para atuação, que o sistema chama de biblioteca emocional. Se acontece na vida também pode ocorrer em cena, esta é uma regra que enriquece nosso espólio de emoções e sentimentos para experiência dos personagens.


Às vezes, diante de circunstâncias impactantes a reação humana mais natural e realista é mesmo a de estado choque, entrando numa espécie de transe momentâneo para absorver o impacto psicoemocional do inesperado. Essa é uma reação de extrema economia gestual, mas que pode ser bem mais expressiva e eficaz na interpretação do personagem que as reações escandalosas e exageradas, que costumam ser o recurso mais comum neste tipo de situação, quando a atuação é clichê. Fazer o exagero físico é muito mais fácil que alcançar um momento de inação dramática com naturalidade, precisamos de treino e concentração para alcançá-la. Lembre-se daquela recomendação dos “menos 90%”, para fugir do exagero que detona a veracidade dos gestos.


“Quando não se consegue crer na ação maior, há que reduzi-la a porções cada vez menores até se poder crer. Não pensem que é pouca coisa. É um trabalho enorme [...] da crença na veracidade de uma ação, o ator pode chegar a sentir-se integrado em seu papel e a depositar fé na realidade de uma peça inteira.” (A Preparação do Ator, pág 180)


Além da inação dramática, outras situações inusitadas como um erro de fala, um tropeço, um espirro ou a queda não planejada de um objeto de cena podem instigar reações genuínas que resultam em mais verdade para a cena. Por isso muitas produções cinematográficas consagradas trazem momentos imprevistos no roteiro, porque os atores souberam aproveitar do momento e a direção considerou como uma novidade tão bem cabida, que passou a ser indispensável e entrou no filme. Não devemos contar com o inesperado, mas precisamos saber usá-lo. Quando estamos no estado criador, imersos e concentrados na experiência do papel, isso é bem possível e carrega grande potencial para adições interessantes.



Criação do corpo do papel:


Interrupções na interpretação criam lacunas que permitem a entrada de pensamentos e emoções alheias aos personagens, é preciso buscar manter a concentração na experiência do papel durante as gravações, entre as cenas e planos, tentando não se distrair com o fluxo de montagem e desmontagem do set. O ideal é que atores se mantenham distantes dessa movimentação, que é responsabilidade exclusiva das equipes de áreas — o único equipamento que atrizes e atores devem carregar e zelar durante as gravações, é a si mesmos, seus próprios corpos e mentes. O elenco deve aproveitar esse tempo para se concentrar. Enquanto os demais preparam o ambiente da cena, o elenco se prepara para entrar em cena, usando exercícios de concentração como os de imaginação criativa e repetição física.


  • EXERCÍCIO 07: Repetir as ações físicas de cada momento da cena de trabalho, separadamente, apenas com os gestos externos, sem falas, experimentando para encontrar as expressões mais naturais e apropriadas a cada ação. Depois de sentir verdade em cada gesto, é hora de reuni-los e executar a cena completa, repetindo-a várias vezes seguidas, uma atrás da outra, sem interromper. Esse tipo de repetição favorece o firmamento dos reflexos físicos à interpretação.


Essa sugestão de exercício exclusivo das ações físicas, é um recurso para a criação do que o sistema chama de linha física, que servirá de trilho para manutenção da concentração e internalização dos gestos que encontramos durante a decupagem, experimentação e ensaios, trazendo para as gravações os resultados dessa preparação.


Nesse momento se pode experimentar, através do contato com os objetos de cena (dentro do círculo de atenção), nosso próprio corpo ou com os colegas de cena, determinando e naturalizando assim a direção certa da expressão física da personagem. Isso facilita que nós conservemos dentro do papel e pode ser praticado até mesmo momentos antes de entrar em cena, revisando as ações enquanto aguardamos nossa vez na gravação. Uma ressalva importante é que esta movimentação, em expressão da vida física do papel, precisa ser exclusivamente motivada por sentimentos inerentes ao personagem.



Criação da alma do papel:


A alma é o que dá vida ao corpo, então essa parte mais interna do trabalho de preparação já se inicia com o trabalho de corpo. Todo movimento deve ser impulsionado pelo estado interior do papel, que é a fonte psicoemocional da qual jorram os estímulos para a ação física, fazendo com que a ação esteja em consonância com a personalidade e objetivos da personagem.


Já sabemos que precisamos conhecer e criar o subtexto por trás das situações trazidas no roteiro, mas precisamos ir além e incrementar nosso processo de decupagem (iniciado nas unidades e objetivos) incluindo o passado do personagem (mesmo que a narrativa do filme não o mencione) e também todos os momentos em que o personagem não esteja em cena. Onde o personagem está e o que sente nos momentos fora de cena? Isso é importante para complementar o momento de entrar em cena novamente. As respostas sobre isso dão mais profundidade às emoções do papel e tornam a atuação mais coesa e rica em nuances.


No cinema um papel é construído pela tríade roteirista-direção-atores, sendo que a visão predominante e validadora é a da direção, que pode desde alterar aspectos do roteiro a limitar a margem criativa dos atores. Então o mais indicado é que atores desenvolvam esse preenchimento das lacunas narrativas em esforço conjunto com a direção, durante o trabalho de preparação na pré-produção, para que o subtexto gerado por esses enxertos seja realmente útil e coerente com a história. Mas caso a direção não tenha conhecimento ou disponibilidade para este trabalho, o elenco deverá fazê-lo por conta própria, considerando o caráter e objetivos do personagem.


Essa construção mais profunda e abrangente sobre a história e personalidade do personagem, tem poder para afastar da atuação os gestos mecânicos ou incoerentes com o papel. Por exemplo, se sabemos que uma pessoa coça a cabeça sempre que está aflita, quando a virmos coçando a cabeça saberemos de seu estado de aflição, antes mesmo que ela nos conte. Ela não irá coçar a cabeça durante uma gargalhada, isso não faria sentido para seu padrão comportamental. O gesto não pode vir de forma vazia, precisa vir sempre em resposta ao estado interior, isso é dar alma a um personagem.


Se alguém chega nos contando sobre uma situação em que uma pessoa que conhecemos muito bem, teve atitudes que sabemos que não condizem com seu caráter e personalidade, será difícil fazer com que acreditemos na tal história. O mesmo acontece na atuação, com a diferença de que será o público desacreditando do personagem, do trabalho da atriz ou ator. Por isso precisamos conhecer nossos personagens a fundo, melhor que ninguém, para garantir uma interpretação realmente interessante e coerente.


Nos pequenos movimentos físicos habita uma forma muito sutil e muito interessante de concentração. Quando não são vazias, as ações físicas são muito poderosas. O sistema aponta ser um risco contar somente com os sentimentos, pois eles não podem ser precisamente fixados. Se um ator consegue acessar uma sensação que lhe provoque o choro, nada garante que ele conseguirá usar o mesmo sentimento para chorar mais vezes — a menos que consiga realizar a façanha de mapear de forma completamente consciente o caminho psicoemocional e estímulos que o levaram àquele estado. Então, os movimentos físicos servem também para apoiar a internalização, através da repetição.


Vejamos através deste exemplo que Stanislavski usou para explicar essa fragilidade dos sentimentos que utilizamos de nossa biblioteca emocional, na narrativa em instrução desta primeira parte do sistema, no livro A Preparação do Ator.


Uma das estudantes consegue chorar durante um exercício, no qual é proposto que ela encontre um bebê abandonado em sua porta, um bebê doente que morre em seus braços, instantes depois de pegá-lo. De primeira, a atriz se emociona e convence a todos (tanto os colegas quanto o diretor) de que o objeto de cena que simula o bebê, um pedaço de madeira enrolado num pano, é mesmo um bebê morto. A memória pessoal que ela usou para atuar de forma tão verdadeira e comovente, foi do próprio trauma por um aborto espontâneo que teve algum tempo antes. Para demonstrar a volatilidade dos sentimentos, o diretor pede a ela que repita a cena novamente, com a mesma carga dramática e utilizando o mesmo impulso interior.


Mesmo ele explicando sobre a fragilidade desses recursos emocionais pessoais, ela garante que fará igual pois o sentimento a pertence e por isso ela tem total domínio para acessá-lo quando bem entende. Ela tenta e falha, não consegue se emocionar novamente pela morte do bebê imaginário em seus braços. Não consegue repetir, porque além da instabilidade dos sentimentos, ela acaba tentando imitar uma vivência de instantes atrás ao invés de realmente sentir o que sentiu antes, ao olhar para o pedaço de madeira lembrando do bebê que perdeu. Não funciona porque fingir é diferente de ser. Na sequência ele indica que ela busque ativar outro estímulo de sua biblioteca emocional, algo que não tenha usado antes, e aí sim ela consegue se emocionar novamente e convencer os colegas. Não exatamente da mesma forma que a primeira vez, mas com o mesmo grau de verdade.


Precisamos entender esta diferença:

Ser: crença total na ação, com a consciência voltada à experiência do personagem.

Parecer: usar de toda competência técnica, movimentos e expressões para passar uma impressão, sem sentir verdadeiramente.


É preciso lembrar que a biblioteca emocional é composta de outros recursos além das experiências pessoais do ator: observação, pesquisa e imaginação. É indicado recorrer a sentimentos provocados pelas lembranças de experiências próprias? Sim, mas somente quando isso não representar riscos à sua integridade mental e a memória utilizada for realmente análoga à situação do personagem. O que não se pode é brincar com traumas e trazer à tona sentimentos perturbadores incontroláveis, em nome da atuação. Isso não é saudável e tampouco profissional, este não é o caminho do sistema. Precisamos usar nossa biblioteca emocional de forma saudável, consciente e controlável, a busca é por meios que facilitem o trabalho e não meios que adoeçam as atrizes e atores.


Para alcançar essa sensibilidade criadora interior da forma correta, é necessário iniciar pelo trabalho de corpo, onde aprendemos a manter boa postura, ter controle muscular, relaxar e respirar apropriadamente. Primeiro o mais fácil, o controle físico, depois a parte mais delicada, do trabalho psicológico. Mas não subestime o trabalho físico, ele requer muita prática.


“Uma bailarina ofega, bufa e sua enquanto executa os exercícios diários, indispensáveis, antes de poder realizar seus voos graciosos no espetáculo da noite [...] nenhum artista está acima da necessidade de manter em ordem seu aparelho físico, por meio dos exercícios técnicos necessários.” (A Preparação do Ator, pág 197)


Outra indicação interessante do sistema, é que alguns atores naturalmente têm mais aptidão ao drama, enquanto outros à comédia. Cada gênero demanda tempos, expressões, humores e trabalho de corpo diferentes, é preciso experimentar de tudo e investir naquele que mais gosta e em que se sai melhor. É claro que existem artistas capazes de atuar em vários gêneros, mas são raros. Mesmo estes, fluidos, precisam se empenhar nos esforços de preparação, para desenvolver tais competências diversificadas. Não podemos atuar forçadamente, precisamos evitar a mentira cênica a todo custo, eliminando tudo que for contrário ao bom senso, à nossa natureza e à lógica do universo do personagem.



MEMÓRIA AFETIVA


Nossa memória é um mecanismo complexo que se divide em vários departamentos, a memória afetiva é um deles e no sistema é ela que nos serve de base para o trabalho interior de criação. De fato, todo artista depende da memória para criar, pois é nela que se armazenam as referências criativas, e os sentimentos são a referência criativa do ator.


Um pintor pode tanto trabalhar sobre algo que já viu (lembrança) quanto criar algo totalmente novo (imaginação), mas independente do que seja ele fará isso com particularidade, aplicando sua subjetividade e estilo próprio. Similarmente, na atuação podemos tanto trabalhar com referência na realidade do que já sentimos diretamente, quanto usar a imaginação para gerar novas sensações. Da mesma forma que até as pinturas mais originais serão influenciadas por tudo que um pintor já viu, na atuação as novas emoções geradas para o papel também terão influência do acervo psicoemocional pessoal de quem o interpreta.


Dois pintores nunca farão quadros iguais olhando para a mesma paisagem e dois atores jamais terão atuações iguais sobre o mesmo papel, em ambos os casos a bagagem existencial e individual de cada um proporcionará interpretações distintas.


A memória afetiva é basicamente uma ferramenta de reaproveitamento ou produção de novas emoções necessárias ao papel. Ela é nosso maior trunfo, serve para nos colocarmos nas circunstâncias do personagem e pode ser despertada por estímulos criativos que tragam a lembranças dos sentimentos de situações passadas (análogas ao papel), estimulando uma compreensão empática sobre o que o personagem passa de semelhante ao que já passamos, ou que despertem nossa empatia sobre tais circunstâncias através da imaginação — como os cinco questionamentos e as suposições criativas.


Se no roteiro diz algo como “o cheiro do feijão no fogo lhe fez pensar em casa e seu olhar ficou distante”, na gravação essa cena pode ser só um plano fechado captando o olhar da atriz ou ator e depois, na edição, se acrescenta um chiado de panela de pressão para representar o feijão cozinhando. No cinema é assim, só é necessário no set o que entra em quadro, não há porque perder tempo produzindo o que não será captado pela câmera, especialmente no contexto das produções independentes e iniciantes. Mas do ponto de vista da atuação, mesmo que não esteja fisicamente em cena, precisa estar presente emocionalmente.


A memória dos sentidos (visão, audição, tato, olfato e paladar) é um recurso importantíssimo no processo da memória afetiva. O exemplo acima demonstra como o feijão não precisa estar na gravação para que a emoção da personagem seja representada, basta que a atriz ou ator recorra à memória olfativa e trabalhe a emoção usando a lembrança, considerando que já sentiu esse cheiro antes.


E quando os atores não conhecem e nem podem experimentar determinada coisa, como trabalharão sem ter a memória de tal experiência? Nesse caso terão de recorrer à sua criatividade artística, amparando-a com conhecimento. Terão de se informar a respeito daquilo e na atuação isso é chamado de “laboratório”. Esse é o processo indicado quando vamos interpretar, por exemplo, um papel que envolve dependência química e qualquer tipo de debilidade física ou mental e qualquer condição que desconheçamos. Não precisamos (nem devemos) aderir pessoalmente a tais situações para interpretá-las, basta que investiguemos a fundo e com sensibilidade, buscando compreendê-las pelas opiniões de especialistas no assunto ou junto a pessoas que já viveram aquilo de formar análogas às do papel.


Mas e se não tivermos em nossa biblioteca emocional as emoções necessárias para determinado papel, e nem pela observação e estudo consigamos nos instigar a senti-las? Stanislavski afirmou que estes são papéis que não interpretaremos bem. A meta é aprender a usar nossa memória afetiva, que contém tanto aquilo que vivenciamos quanto aquilo que compreendemos profundamente pela observação, estudo e imaginação. É uma questão lógica, se não sentirmos verdadeiramente estaremos fingindo e uma atuação fingida não costuma convencer.


Continuando sobre contracenar com o que não está presente nas gravações, algo ainda mais frequente em gêneros como fantasia e ficção-científica. É muito comum que atores precisem interagir com o que não existe em nossa realidade, como criaturas fantásticas, mitológicas — que são adicionadas por efeitos especiais, durante a pós-produção do filme. Precisamos nos preparar para isso, confiando no poder da imaginação a serviço das emoções. Uma prova do imenso potencial dessa relação entre imaginação e emoções é o fenômeno da gravidez psicológica, que mesmo sendo um estado exclusivamente emocional é capaz de manifestar sintomas físicos de uma gravidez real.


Outro recurso muito interessante da memória afetiva é a capacidade de alterar a realidade, modificando lembranças e nos fazendo perceber algo com maior ou menor intensidade do que o acontecimento teve de fato ou incluindo ou excluindo elementos. Isso ocorre por conta do impacto psicológico das experiências sobre nós. Às vezes essas mudanças de percepção e acréscimos também ocorrem pelo cruzamento entre memórias de eventos distintos.


  • EXERCÍCIO 08: lembre-se de uma experiência marcante que viveu, escreva detalhadamente sobre o acontecimento e as sensações causadas por ele e guarde esta anotação. Algum tempo depois, em uma nova nota, ainda sem visitar a anterior, relembre e detalhe a mesma experiência novamente. Depois de finalizar o segundo relato compare as duas notas e perceba as diferenças entre elas, veja numa há detalhes que faltaram na outra.


É muito comum encontrar uma lembrança antiga modificada ao revê-la em nossa biblioteca emocional. Stanislavski ponderou que o simples fato de conseguirmos acessar lembranças mais antigas, com riqueza de detalhes, já é um grande privilégio, pois os novos acontecimentos tomarão maior espaço e estarão mais acessíveis em nossa memória, por serem mais frescos. Por isso o sistema indica que não devemos perder tempo forçando o uso de uma emoção muito antiga, especialmente se já a tivermos utilizado anteriormente para a atuação, pois isso faz com que ela se desgaste ainda mais. Até podemos tentar, mas quando essas emoções não surtirem efeito não há razão para insistir, melhor investir em outras memórias mais frescas e capazes de nos emocionar com mais facilidade.


Quando o sistema fala em reciclar emoções próprias do artista, para servir de base à construção emocional do personagem, é especificamente caso elas sejam análogas às circunstâncias do papel. Não estamos falando do uso de memórias aleatórias, que nos tragam uma expressão (meramente externa) capaz de se passar pela emoção do personagem. Essa reciclagem de emoções é no sentido de olhar para as circunstâncias do roteiro e dizer “ora, eu conheço isso, já senti algo parecido” e daí esmiuçar essa nossa emoção pessoal, entender as nuances sentimentais e usar isso na construção das emoções do personagem. Em síntese, é um trabalho de empatia, usamos nossas próprias vivências para facilitar que nos coloquemos nas circunstâncias do papel.


Portanto, nada de pensar na morte de um ente querido para se emocionar em uma cena de decepção amorosa, por exemplo, porque fazer algo assim representa o completo abandono da experiência do papel. Isso é fingir ao invés de ser. E o fingimento às vezes não funciona? Talvez algumas pessoas se convençam por uma farsa, mas é bem difícil convencer a todos ou pelo menos à maioria. Nunca subestime a inteligência e capacidade de percepção do público, lembre-se que a mentira tem pernas curtas e que nossa missão é fazer com que ele conheça e se conecte com nossos personagens. Enganar o público definitivamente não é o caminho do sistema, quem deseja esse tipo de atuação deve procurar outro método.


Agora ressalva sobre emoções inesperadas, aquelas que não vem diretamente do trabalho do ator, mas sim de rompantes inconscientes. Elas são imprevisíveis, podem ser tanto positivas quanto negativas. Imagine que no momento de realizar uma cena o ator seja tomado por uma emoção totalmente distinta do que foi elaborado durante a preparação do papel? Caso não esteja completamente de acordo com a visão da direção ou não seja coerente com a ação dos outros personagens e nem com a carga emocional que a cena exige, isso será completamente inútil.


Quando o inesperado funciona é encantador, de fato, e é verdade também que essa espécie de arrebatamento é um desejo comum em artistas cênicos. Todos queremos mergulhar no papel a ponto de nos esquecermos do controle sobre a atuação, deixando a emoção do personagem fluir livremente, mas não há garantia de que isso aconteça ou que funcione. O trabalho consciente das emoções é com o que realmente podemos contar, pois seu resultado é garantido pela dedicação e treino sob os estímulos criadores. Por que ambicionar tanto por essa fonte imprevisível e incerta de inspiração, quando o trabalho consciente é um recurso fiável e que ainda pode servir para despertar uma forma mais equilibrada de inspiração? Basta que durante a decupagem elenquemos as emoções mais profundas e interessantes para compor o papel, que as chances de um resultado inspirado serão boas.


Com a citação abaixo adentramos no que provavelmente foi o ponto de maior controvérsia do sistema após sua publicação em A Preparação do Ator, um ponto que Stanislavski se esforçou muito para esclarecer, pois segundo ele algumas escolas da época distorceram completamente tal afirmação e usaram-na para exercer práticas antiéticas e contrárias ao sistema, por mais que dissessem partir dele — falarei mais sobre esta questão em um dos textos adicionais deste estudo, que introduzem quatro das mais bem sucedidas ramificações do sistema.


“Sempre e eternamente, quando estiver em cena você terá de interpretar a si mesmo. Mas isto será numa variedade infinita de combinações de objetivos e circunstâncias dadas, que você terá preparado para seu papel e que foram fundidas na fornalha da sua memória de emoções.” (A Preparação do Ator, pág 217)


No contexto dessa fala ele justifica que uma boa atuação inclui o toque pessoal da atriz ou ator, pois isso faz parte da criação em si. Dessa forma, todos os sentimentos que criamos para compor o estado emocional dos personagens, no fim das contas nos pertencem, pois somos nós que elaboramos e agimos sobre eles. Por mais que tudo isso seja em favor de uma vida que não é a nossa própria, ainda somos nós fazendo esta vida acontecer. Nós nos emprestamos para fazer a história de outro ser... não somos o personagem, mas o personagem nos é pois depende de nossa bagagem psicoemocional, corpo e voz. É uma simbiose enigmática, a atuação é um trabalho que envolve paradoxos e complexas subjetividades existencialistas.


“O ator deve usar sua arte e sua técnica para descobrir, por métodos naturais, os elementos que precisa desenvolver para seu papel. Deste modo, a alma da pessoa que ele interpreta será uma combinação dos elementos vivos do seu próprio ser.”

Você deve preocupar-se, primordialmente, em encontrar um meio de recorrer ao seu material emocional; depois, em descobrir métodos para criar um número infinito de combinações de almas humanas, caracteres, sentimentos, paixões, para os seus papéis.” (A Preparação do Ator, pág 128)


Resumidamente, estes foram os recursos do acervo psicotécnico vistos até agora:


  1. Sugestões criativas.

  2. Unidades e objetivos.

  3. Objetos de atenção.

  4. Verdadeira ação física.

  5. Insinuação de subtexto.

  6. Impacto do cenário e efeitos.


Por fim, precisamos acrescentar constantemente ao estoque da biblioteca emocional, tanto através da experiência imediata quanto da observação de outras pessoas, animais, obras de arte, literatura, passeios, viagens e toda sorte de experiências humanas que sejam interiormente enriquecedoras. Escutar as pessoas e seus causos com empatia também é muito enriquecedor para a arte cênica. Atrizes e atores devem levar a vida de maneira interessante e diversa, em contato com diferentes lugares e culturas, seja pessoalmente ou através das pesquisas e estudos. Observar, experimentar e conjecturar, para finalmente se emocionar.



COMUNHÃO


Entramos em comunhão com tudo a que nos conectamos, seja mental ou fisicamente, por qualquer um dos sentidos, em intercâmbio energético com algo ou alguém. O sistema diz que a falta de conexão e intercâmbio entre atores, deforma ou destrói a atuação e também afirma isto a respeito da auto-comunhão, de concentrar-se em si mesmo, em meditação sobre a experiência do personagem. Precisamos (através da decupagem) identificar nossos objetos de atenção em cena, que podem ser desde o colega a um objeto de importância para narrativa ou um pensamento sobre algo para além da mise-en-scène, como memórias de situações passadas, expectativas futuras, desejos… qualquer coisa, desde que tenha relação com os objetivos e emoções do papel e com a ação presente.


A comunhão entre atores em cena se estabelece essencialmente pelo olhar e pelo esforço de compreensão do que o outro expressa. Quando alcançamos este estado é possível interagir de forma orgânica, colaborando e reagindo com coerência sobre o presente, podendo improvisar e contornar pequenos erros com maior facilidade, sem ficar engessados ao texto. Não devemos fingir que entendemos o que nosso colega de cena diz, enquanto pensamos nas nossas falas, figurino, maquiagem ou qualquer coisa do tipo durante a atuação. Precisamos nos manter focados e atentos na escuta aos colegas de cena, como se realmente estivéssemos ouvindo suas falas pela primeira vez e mais ainda, nos conectar com sua presença a ponto de sentir a emoção para além das palavras.


Há quem chame de intuição, sexto sentido ou simplesmente de sensibilidade o que Stanislavski intitulou de raios invisíveis. Pessoalmente escolho chamar apenas de energia. Trata-se do que pode ser sentido sem que seja dito ou evidentemente sugerido por grandes gestos, é a sensação sutil que um lugar ou pessoas nos transmitem. Por exemplo, uma casa abandonada transmite energia assustadora, uma casa suja e desorganizada pode nos causar ansiedade, já uma casa limpa e organizada nos traz sensações agradáveis.


Quem nunca sentiu paz de espírito depois de concluir uma faxina? Mesmo cansados sentimos a mudança energética do ambiente e ela nos impacta positivamente. Da mesma forma acontece com as pessoas, elas transmitem energias específicas de acordo com seu estado emocional. Pessoas, lugares, objetos, animais… toda matéria carrega e transmite energia, se tivermos sensibilidade suficiente poderemos percebê-la. Enquanto servos da arte de representar, precisamos desenvolver essa sensibilidade para sentir a energia transmitida, especialmente em relação a nossos colegas, ou melhor, sobre os personagens que nossos colegas de cena interpretam.


  • EXERCÍCIO 09: Esta prática deve ser feita em dupla, cada um vai sortear um sentimento no dispositivo de improvisação e tentar, através do olhar, transmitir e ao mesmo tempo perceber o que está recebendo do outro. Depois de alguns instantes de concentração em contato visual, cada um irá descrever o que sentiu e revelar o que emitiu, conferindo se foram exitosos tanto em expressar quanto em perceber as energias trocadas.


Essa troca deve acontecer pelo olhar, sem mimetismo ou exagero de expressões. O objetivo não é acertar a palavra exata do sentimento sorteado, mas sim captar a essência do que foi transmitido. Então, se a primeira pessoa tentar transmitir melancolia e a segunda descrever como tristeza ou outro sentimento análogo, a comunicação através do olhar foi exitosa, houve comunhão e troca energética.


Isso acontece naturalmente nas relações humanas, em situações onde pessoas se paqueram só pelo olhar ou um olhar fulminante que se recebe de alguém e então não resta dúvidas do desafeto. Por isso ser algo natural e humano precisamos incorporar à atuação, para que a experiência dos personagens seja mais verdadeira e para que habitem a mesma atmosfera cênica, trazendo mais compatibilidade e fruição às cenas.



ADAPTAÇÃO


O sistema chama de adaptação a capacidade humana de ajuste interno ou externo em relação a outros seres, objetos, ambientes e circunstâncias. A comunhão e a adaptação andam juntas, aliadas pela missão de proporcionar intercâmbio. Se o primeiro passo é perceber os sentimentos e emoções transmitidas pelo outro, o segundo é usar essa comunhão para nos adaptarmos a essa energia e agir de acordo.


Ambas as etapas são de extremo valor para provocar expressões sutis, que enriquecem a atuação. Se durante seu trabalho individual de preparação o ator se condicionar a ponto de ter na ação conjunta as exatas reações que planejou sozinho, terá caído novamente na indesejada atuação mecânica, não estará trabalhando a partir do estado criador verdadeiro pois este exige adaptação.


Sim, precisamos desenvolver as emoções internas do estado de espírito do personagem, mas sempre deixando alguma margem para adaptação à atmosfera do momento da gravação, que nunca será exatamente a mesma dos momentos de preparação e ensaio. Podemos alcançar estados análogos, de maior ou menor intensidade, mais ou menos satisfatórios, mas nunca será exatamente igual, até porque se for estaremos atuando de forma mecânica, replicando ao invés de vivenciar de fato. O ambiente cenográfico e a indumentária também influenciarão, por isso é importante incluir o elenco em visitas de locação e realizar alguns ensaios com figurinos e maquiagem, se possível.


Tentar reproduzir um estado de espírito anterior só pelos gestos e falas, ao invés de rebuscar as sensações internas que provoquem reações externas desejadas, é tomar o rumo da atuação superficial. Lembre-se sempre que imitar é fingir, o que é muito diferente de realmente ser ou estar. Precisamos nos manter abertos, ser adaptáveis ao presente, considerando também o estado dos personagens dos colegas. Essa consideração pelo outro é a famosa generosidade cênica, praticada por poucos já que muitos só conseguem considerar a si mesmos.


Abrir mão de uma atuação milimetricamente calculada e que apenas satisfaz o próprio ego e expectativas do ator, se permitindo decente atitude de enxergar o outro e se adaptar a ele, é realmente um gesto de generosidade. Embora pareça algo óbvio, isso é bem raro, especialmente no contexto iniciante e independente, onde os elencos costumam ser formados por atores e atrizes poucos experientes. Apenas uma atuação madura reconhece a importância da conexão e troca com os demais, a atuação imatura é carregada de inseguranças que se amparam em posturas egocêntricas.


Durante a preparação internalizamos possíveis formas de atuação sobre as emoções dos personagens diante das situações que lidam, precisamos dessa experimentação, isso é se preparar. Precisamos construir nossa interpretação do papel, mas façamos isso sem fechar totalmente as portas para novas possibilidades, para as inspirações conscientes que se apresentem. A preparação ajuda a encontrar o tom necessário, mas a intensidade é dada no ato da experiência vivida e revivida a cada vez que se repete a cena.


Imagine que dois personagens estejam em cena, um momento emocionante onde transbordar em lágrimas seria o ideal, mas ao invés disso, inesperadamente, os dois tem uma crise de riso. Se neste momento houver concentração, verdadeiro sentimento de comunhão e capacidade de adaptação, o choro pode vir naturalmente depois da crise de risos, com toda naturalidade e ainda realçado pelo contraste entre gargalhadas e lágrimas. Um momento assim tem todo potencial para resultar numa atuação brilhante, que possa não só caber no filme, como também torná-lo melhor. Atores despreparados, que não tenham desenvolvido uma segunda natureza onde a essência do personagem possa existir em conexão total consigo mesmo e com os outros, muito provavelmente desperdiçariam uma oportunidade como a do exemplo acima, necessitando recomeçar a cena ao ter sua minúscula concentração dilacerada pelo imprevisto.



  • EXERCÍCIO 10: Escolha um trecho de cena, uma ação simples, e a execute como desejar, seguindo seu instinto inicial sobre ela ou até mesmo sem nenhuma carga interior. Em seguida, sorteie uma emoção do dispositivo de improviso e repita a mesma ação anterior, só que dessa vez sob influência da emoção sorteada. Repita sorteando outras emoções e perceba a variedade de possibilidades que uma mesma cena ou ação pode ter, quando adaptada a diferentes emoções.





Quando trabalharmos adaptações sobre um personagem de fato, para um filme, devemos considerar em primeiro plano os seus objetivos, em segundo a personalidade do personagem e em terceiro a atmosfera composta pelos personagens dos colegas de cena — compreendendo que essa adaptação ao outro é no sentido de ter resposta coerente a suas ações, não para incorporar as emoções do outro personagem, que tem seus próprios objetivos, personalidade e motivações interiores.




FORÇAS INTERIORES


Sentimentos são nossos guias naturais sobre o que vivenciamos, é baseado neles que percebemos o mundo e que agimos e reagimos diante das situações, então buscar proporcionar o mesmo à experiência de nossos personagens. Nós descobriremos e admistraremos os sentimentos dos papéis, compondo (em paralelo à nossa) uma segunda natureza interior para hospedá-los. Essa será uma espécie de consciência individual, adequada para comportar a personalidade e emoções sob as quais os personagens precisam existir diante das circunstâncias do filme. O personagem existirá em nós, através de nós, habitando essa natureza temporária que cedemos para que ele exista. Lembrando que nós não seremos o personagem, não o levaremos para casa depois dos ensaios ou gravações e não nos relacionaremos com as pessoas próximas a nós usando essa outra personalidade que estará em nosso psicoemocional, durante o período do trabalho.


Ao assumir um personagem, a atriz ou ator se compromete em representar sua experiência dentro do recorte narrativo do filme e, através do sistema, o caminho para isso é o desenvolvimento da segunda natureza, que é composta após a decupagem que nos permite um entendimento verdadeiro e profundo sobre a personalidade do personagem e seus objetivos. O sistema descreve as etapas desse processo de compreensão da seguinte forma:


“O ator toma os pensamentos contidos nas falas do papel e chega a uma concepção do que eles significam. Essa concepção, por sua vez, levá-lo-á a formar uma opinião sobre eles, que, correspondentemente, afetará seus sentimentos e sua vontade.” (A Preparação do Ator, pág 294)


Para que realmente funcione, para alcançarmos o estado criador verdadeiro, nenhuma destas etapas pode ser descartada. Precisamos mesmo estudar o roteiro e compreender a fundo suas falas e os subtextos que elas abrigam, formando uma opinião correta sobre o estado interior do personagem, em todos seus momentos, assim podendo cultivar sentimentos que realmente lhe representem — sempre de acordo com a visão criativa da direção. Depois pegamos toda esta compreensão e com ela solidificamos a consciência do personagem, dentro da segunda natureza, um espaço psicoemocional reservado para o papel.



A LINHA CONTÍNUA


Devemos ler nossos roteiros por completo várias vezes antes de pensar em iniciar o processo criativo. As primeiras leituras servem apenas para uma compreensão geral da história, depois disso é que podemos partir para a decupagem — que é o estudo e detalhamento minucioso do texto em subtexto, como já explicado em UNIDADES E OBJETOS — buscando preencher as lacunas que o roteiro deixa sobre nossos personagens, momentos de sua vida que não entram em cena.


Este processo de composição complementar do personagem (para além do fornecido pelo roteirista) é chamado pelo sistema de linha contínua e sem fazer isso lhe ofereceríamos uma existência picotada. Não se pode viver assim, seres humanos não tem botão de pausa, até mesmo quando dormimos estamos em atividade subconsciente, então, que verdade haveria em fazer isso com os personagens? A vida não pode ser assim, aos pedaços.


Temos que elaborar uma linha existencial ininterrupta para o papel, usando o roteiro, as instruções da direção e nossa imaginação para supor o que acontece na vida de nosso personagem quando não está em cena. E além desses acréscimos complementarem os momentos em ação no filme, também são um recurso poderoso para nos mantermos concentrados no estado interior do personagem, nos intervalos da atuação, enquanto toda a mise-en-scène é preparada para a gravação.


Se alguém nos perguntar “o que você fez hoje?” até podemos responder “nada”, mas isso não seria verdade. Pode ser que não consideremos nossos feitos do dia relevantes o suficiente para relatar, mas alguma coisa fizemos, porque até ficar em repouso é fazer algo. Em um filme não é possível mostrar todos os “nadas” de cada personagem, se fosse assim cada filme duraria dias e por uma série de motivos esse não é um formato viável, então são explorados apenas os momentos mais significantes para a construção do conflito central da narrativa. Cabe a nós, atrizes e atores, criar essa parte que fortalecerá a potência existencial de nossos papéis.


Imagine que seu personagem é mostrado no filme, por exemplo, saindo de casa alegremente para uma entrevista de emprego, no começo do dia, e depois só o vemos novamente chegando em casa, já de noite, e abrindo a porta de entrada enquanto fala com sua mãe pelo celular. Suponhamos que estas duas cenas foram gravadas no mesmo dia, com poucas horas de diferença entre elas — o que é possível de se fazer, graças a efeitos de edição e iluminação como o da noite americana. Enquanto atores precisaremos de estímulos para compor essa adaptação às transições de tempo, isso agregará à nossa expressão tornando-a convincente dessa passagem de tempo, que na realidade não existiu, mas precisa ser representada.


Enfim, é importante saber o que aconteceu nesse meio tempo para constituir as nuances emocionais e transições, entre um ponto e outro, pois mesmo nos dias mais equilibrados a energia que temos de manhã não é a mesma que temos à noite. Um ser vivo sofre desgaste natural no decorrer do dia e isso é potencializado por cada pequeno acontecimento. Para onde foi? Com quem encontrou? Passou a tarde no parque, depois da entrevista de emprego? O que viu de interessante? Talvez tenha visto uma senhorinha que lhe lembrou sua mãe que mora em outra cidade e isso, consciente ou subconscientemente, lhe fez sentir saudades e por isso ligou para ela naquele momento, chegando em casa. Percebe? Pelo roteiro só sabemos que ele foi a uma entrevista de emprego de manhã e retornou para casa no final do dia fazendo a chamada, mas precisamos entender o que passou para que sua energia seja coerente e suas ações tenham justificativas interiores, que as tornarão mais verdadeiras e consequentemente mais críveis.


Esses são detalhes essenciais ao processo criador. Se vamos viver o papel com profundidade, precisamos saber de tudo que se passa com nosso personagem, pelo menos durante o recorte existencial do filme, mas preferencialmente também incluindo seu passado nessa construção, porque assim conhecemos a história que o tornou na pessoa que é, no recorte temporal do filme.



O ESTADO INTERIOR DA CRIAÇÃO


“Enquanto a sua meta não se definir, a orientação das suas atividades não se poderá formar. Sentirá em seu papel apenas momentos isolados.” (A Preparação do Ator, pág 300)


Contando com todas as ferramentas de criação que o sistema dispôs até aqui, temos recursos técnicos suficientes para iniciar o processo de preparação de um papel. Como dito no tópico anterior, nosso ponto de partida neste processo é a leitura atenta do roteiro, repetidas vezes, para compreensão dos objetivos menores, médios e do superobjetivo. Só dessa familiarização com o texto poderemos abordar os aspectos sutis do papel, não adianta ter pressa e partir para dramatizações ocas, mecânicas.


Quando fizermos as primeiras leituras o intuito deve ser apenas conhecer a história e as dinâmicas entre personagens, sem tentar já partir para a dramatização. Como poderíamos agir com a intenção correta, se ainda nem conhecemos de verdade o estado interior de nosso personagem? Stanislavski atesta ser raríssimo ter reflexos certeiros de inspiração sobre um papel, nessa fase inicial, então não precisamos nos precipitar. O trabalho de compreensão do papel exige calma e minúcia, a pressa pode facilmente resultar na superficialidade e dificultar muito o aprofundamento sobre as emoções do personagem.


Qualquer reflexo assertivo que surja nas primeiras leituras, será mero fragmento. Lembre que não vivemos de forma fragmentada, então antes de tudo precisamos compor a linha direta de ação. O trabalho criador só começa depois de termos essa linha existencial ininterrupta completamente formada. Vocalizar notas musicais soltas não é o mesmo que cantar, rabiscar aleatoriamente um papel não é desenhar, e dizer algumas falas soltas do papel não é atuar. As primeiras leituras do roteiro (leituras de mesa) servem apenas para compreensão geral da história e princípio de familiarização, tanto entre com o elenco quanto com a direção.


“[...] o ator deve praticar constantemente, para alcançar uma verdadeira disposição criadora em todas as ocasiões, quer esteja atuando, ensaiando ou trabalhando em casa.” (A Preparação do Ator, pág 316)


Se desejamos obter os resultados que o sistema possibilita, precisamos antes passar por todas as etapas de decupagem, incluindo unidades, objetivos e preenchimento das lacunas. Depois, canalizamos em nossos aparelhos físico e mental os recursos de concentração e relaxamento. Para isso servem os exercícios indicados neste estudo, em cada respectivo tópico, estes devem ser praticados independente de termos ou não um papel em vista, são a prática condicionante e aperfeiçoadora que irá nos manter em forma para estarmos prontos quando surgirem as oportunidades.


“Às vezes, um objetivo existe subconscientemente e chega até a ser executado subconscientemente, independendo da vontade ou do conhecimento do ator. Muitas vezes, só depois é que ele vem a compreender plenamente o que se passou.” (A Preparação do Ator, pág 320)


A segunda natureza será uma parte de nós treinada para acomodar os papéis, tecnicamente guiada pela consciência artística. Uma parte atua (segunda natureza: personagem) enquanto a outra acompanha atentamente e dirige a atuação (natureza do ator: condutora). Nem sempre vamos precisar sentir essa divisão, adicionando mais e mais estímulos para a fruição emocional do personagem. Conforme assimilamos o processo de preparação, as duas naturezas irão se misturar e fluir de forma orgânica. Nos picos de inspiração até nos esqueceremos da nossa própria natureza e por instantes estaremos imersos na experiência do ser que representamos.


“A qualidade de força e resistência do estado interior de criação do ator, varia na razão direta da grandeza e significação do seu objetivo.” (A Preparação do Ator, pág 320)


Se exercitarmos de forma avulsa uma ação onde procuramos por um objeto perdido, precisaremos antes de tudo saber qual a importância de tal objeto. Por exemplo, procurando por uma caneta simples de papelaria, sem nenhum valor sentimental, não vamos reagir da mesma forma que reagiríamos se tratando de uma caneta especial, um presente com valor emocional. Através das sugestões criativas é possível saber quem deu a caneta, há quanto tempo a tinha e tudo mais que possa incrementar a carga dramática da ação. E se foi um presente da avózinha? E se ela já faleceu e o objeto ajudava a manter sua memória? E se nem fabricam mais desta caneta? As respostas de todos estes questionamentos agregam ao objetivo, que move o estado interior.


E se ao invés da caneta especial o personagem simplesmente precisasse fazer uma anotação importante, como escrever o telefone de alguém que lhe chamou para uma entrevista de emprego, por exemplo? No momento da ação, a falta de uma caneta barata e sem valor sentimental nenhum, também seria imensamente sentida. Mas os sentimentos seriam muito diferentes do exemplo anterior, nesse caso se baseariam na importância do que deveria ser anotado e não no valor do objeto em si. As emoções são determinadas pelos sentimentos e os sentimentos são determinados pelo objetivo, por isso ele precisa ser muito claro e estar sempre no centro da ação.



O SUPEROBJETIVO


A sugestão de Stanislavski é que os objetivos devem receber nome na forma de verbos, pois assim impelem com mais facilidade à ação. Vejamos novamente o filme Náufrago como exemplo, nele o objetivo central do personagem de Tom Hanks, preso por anos numa ilha deserta, é retornar à civilização para reencontrar sua noiva. Toda ação de sobrevivência e busca por resgate gira em torno deste superobjetivo, representado pelo verbo “reencontrar”.


Existem vários objetivos pequenos que o movem a curto prazo, como encontrar abrigo e alimento, fazer fogo, se curar da dor de dente e navegar a mar aberto em busca de resgate, mas no fim das contas o que orienta todo esse esforço pelo objetivo médio de sobreviver, é o desejo de retornar. Sem a atenção devida, poderia se dizer que seu superobjetivo era apenas a sobrevivência, mas é muito nítido que existe algo que alimenta esse objetivo, um objetivo muito maior, que é o de retorno. A importância dada ao relógio com a foto de Kelly é um grande indicador disso, o desenho que ele faz dela na caverna, a mensagem que ele escreve na pedra antes de sair da ilha na pequena jangada, a pergunta que ele faz ao colega quando já está no avião retornando para casa são todos exemplos de momentos que confirmam este sendo seu superobjetivo.


Essa necessidade de reunião com a sua amada é apresentada já nos primeiros momentos do filme, antes mesmo do acidente, tudo gira em torno desse reencontro e o filme acaba justamente com ele numa encruzilhada após ter essa expectativa frustrada, um final aberto para que ele encontre um novo objetivo, um novo rumo. Portanto, a linha direta de ação, segue em direção a este superobjetivo até o final, tornando-o maior que todos os outros objetivos menores, que ficam em segundo ou terceiro plano, preenchendo e dinamizando o filme. Essa capacidade reflexiva, de compreensão narrativa sobre os objetivos é um pré-requisito essencial e indispensável tanto ao trabalho de atuação quanto ao de direção, realizado através da decupagem do roteiro.


Este é o norte de qualquer personagem, precisamos descobri-lo com exatidão, antes de tudo, para que as ações sejam coerentes com as emoções do papel, mantendo a expressão do personagem na direção correta. Devemos questionar e reavaliar qualquer tendência psicoemocional do personagem que aponte em direções opostas à do superobjetivo — a menos, é claro, que haja no roteiro a indicação de ações que atentem contra o objetivo, o que é possível em momentos que os personagens estão a beira de desistir, mas geralmente estes momentos só existem para ser superados e dar ainda mais força à jornada rumo ao superobjetivo.


É importante lembrar que além da meta maior do filme (que costuma ser o superobjetivo do protagonista, em narrativas de estrutura clássica) existem os objetivos de cada um dos outros personagens, que têm interesses próprios. A meta do antagonista costuma ser oposta à do protagonista. Cada personagem precisa operar sob seus próprios objetivos e superobjetivo, mesmo sabendo o desfecho em favor (ou não, em narrativas trágicas) do protagonista. Daí a necessidade de um trabalho não apenas individual, mas também conjunto com a direção, garantindo que todos se encontrem devidamente alinhados.


A esta altura Stanislavski resumiu da seguinte forma:


“Tudo que empreendemos neste primeiro curso teve o sentido de capacitá-los a exercer controle sobre os três aspectos mais importantes do nosso processo criador:


  1. A vontade interior.

  2. A linha direta de ação.

  3. O superobjetivo.


[...] Abarcamos todos esses pontos em termos gerais. Agora vocês já sabem o que queremos dizer com nosso sistema.” (A Preparação do Ator, pág 331)


Todos os elementos explanados até aqui são para servir de estímulo a estes três aspectos criadores. O sistema não serve para fabricar inspiração, mas sim para preparar um terreno fertil e favorável a ela. A inspiração não é controlável, pertence à natureza, o que nós enquanto atrizes e atores podemos e devemos fazer é nos preparar e atuar consistentemente, com o máximo de verdade, quer o ápice da inspiração seja alcançado ou não.



NO LIMIAR DO SUBCONSCIENTE


“É um erro pensar que o ator experimenta um segundo estado de realidade quando está em cena fazendo o trabalho criador. Se fosse assim, nosso organismo físico e espiritual seria incapaz de suportar a quantidade de trabalho que lhe seria imposta.” (A Preparação do Ator, pág 338)


O esquecimento do “eu” enquanto tomados por inabalável fé cênica é possível, porém temporária e raramente. Por isso falamos em segunda natureza que aconteça paralelamente à nossa natureza pessoal. Mesmo incluída já nessa primeira parte do sistema, essa ressalva passou despercebida ou foi ignorada por muitos dos primeiros praticantes (especialmente na cena norte-americana da época), que acreditaram equivocadamente que estado criador e o uso da memória afetiva operassem sob intenção do ator se tornar o personagem — coisa que nunca foi sugerida por Stanislavski. Não é sobre isso, pelo contrário. O personagem que, de certa forma, deve se tornar o ator já que este, no momento, é quem irá realizá-lo.


Trata-se da busca criativa por uma sensibilidade extrema que nos torne verdadeiros empatas, capazes de entender as motivações interiores e nos colocar nas circunstâncias que o personagem enfrenta, representando nossa própria versão de tal experiência. Quando falamos na individualidade da segunda natureza, dedicada às emoções dos personagens, não é que teremos duas consciências individuais se emocionando ao mesmo tempo, dentro de nós. O que acontece é que a nossa natureza pessoal, nossa intimidade, emoções problemas e outras particularidades que nada tem a ver com a experiência do personagem, precisam ser postas de lado, silenciadas, para que possamos nos dedicar integralmente aos sentimentos do papel. Isso é atuar com profissionalismo, sob o compromisso de dedicar nossa sensibilidade ao trabalho, exclusivamente, ao invés de nossas preocupações pessoais e inseguranças enquanto artistas.


Para acessar tal nível de sensibilidade artística é necessário iniciar o trabalho criador pela descontração, primeiramente a muscular. Assim como o ator de teatro despreparado corre o risco de se enervar diante da pressão que uma plateia lotada pode exercer, o ator de cinema corre o mesmo risco de tensão diante da equipe e estrutura do set, ou mesmo da pressão por atuar bem na cena, não esquecer das falas, etc.


O outro tipo de tensão é a psicológica, frequentemente disparada pelo comando de “ação!” dado pela direção. Estar diante das câmeras é estar diante do público e atores sabem disso, mas este é um pensamento que não podemos ter quando estamos em cena, simplesmente porque o personagem não sabe que está sendo visto pelas lentes ou pelo público, isso não faz parte de suas preocupações, precisamos focar integralmente em sua experiência, não podemos dar margem para pensar e sentir coisas que não lhe pertençam.


É uma tarefa paradoxal, já que ao mesmo tempo o ator também precisa estar ciente das marcações e enquadramento, ângulos e microfones, entre tantas outras questões técnicas que complexificam o trabalho e podem dificultar a concentração. A solução para isso é ter a segunda natureza em primeiro plano, com a linha contínua do papel, e a natureza artística do ator em segundo plano, guiando todo o processo e atendendo às necessidades técnicas. De certa forma, nossa consciência artística será tipo um subconsciente durante a atuação, enquanto a consciência será o psicoemocional do personagem. Dominar este estado requer muita dedicação, práticas constantes em exercício a tais princípios.


A familiarização com o set e os elementos cenográficos da mise-en-scène montada, também é um importante recurso para aliviar tensões. A direção deve proporcionar esse momento de apropriação ao elenco, lhe explicando as marcações e a disposição dos equipamentos de captação, antes do momento da ação. Isso pode parecer algo dispensável, quando já houve todo um esforço em ensaios anteriores às gravações, mas não é. O trabalho anterior não deixa o ator pronto para ser jogado em set, invariavelmente cheio de detalhes para que ele deve prestar atenção ou itens com os quais se requer que ele tome muito cuidado, como cabos e outros equipamentos.


Compartilhar o storyboard do filme ou série com o elenco (antes das gravações) também é uma sacada interessante, porque assim as atrizes e atores já conhecerão os planos que farão e isso facilitará que estejam instruídos e mais seguros sobre as demandas técnicas para os dias de gravação, podendo focar mais ainda na segunda natureza em experiência do papel. Com o elenco preparado, técnica e artisticamente, basta que as atrizes e atores se mantenham focados nos objetivos de seus personagens, cada um concentrado no seu superobjetivo e objetivos menores, introduzindo estímulos criadores sempre que precisarem reacender as emoções de alguma cena, entre as repetições das tomadas.


Stanislavski diz que se chega ao limiar do subconsciente quando se alcança ambas as formas de relaxamento, se entregando à cena com verdade e naturalidade. Na vida pensamos, nos preocupamos, fantasiamos, temos neuroses e paranoias, arrependimentos e desejos, etc. Então, precisamos ser da mesma forma em cena, porém com exclusividade sobre a vida do personagem. Mas estas duas formas de tensão não são os únicos obstáculos:


Resumo dos principais obstáculos ao trabalho criador e possíveis soluções:

  • Realizar em público — diante da equipe e dos equipamentos:

Iniciando pelo relaxamento físico e mental, seguido da introdução de estímulos e suposições sobre os objetivos;

  • Indefinição temática — objetivos imprecisos;

Esclarecer tudo que esteja confuso, sem nitidez, decupando através do esquema de unidades.

  • Incompreensão das limitações naturais;

Estudos sobre atuação e profundo autoconhecimento — para o ator que tenha uma expressão naturalmente ingênua, por exemplo, será muito difícil interpretar um personagem cínico e malicioso;

  • Expressão exterior sem sentido interior.

Diretor(a), preparador(a) ou algum colega capacitado e de confiança, podem e devem apontar as ações de aparência mecânica ou exagerada.


O melhor recurso é levar para o set um bloco com anotações dos elementos essenciais do papel, apurados durante a decupagem, para conferir quando uma cena estiver empacada — o que geralmente acontece por confusão ou incerteza sobre os objetivos da ação presente. Se os atores não tiverem certeza absoluta, a expressão do papel se equivoca e toda coerência narrativa desmorona, pois todo o filme acontece em função dos objetivos.


Não é demais destacar, mais uma vez, que o superobjetivo precisa ser emocional, consciente, criativo, inteligente e inspirador aos atores, em função da atuação. Esse trabalho de encontrá-lo requer precisão e sensibilidade por parte da direção e elenco, pois os roteiros não trazem esse tipo de informação de maneira explícita, o superobjetivo é revelado por meio dos acontecimentos, não vem como uma frase por extenso no roteiro. Por exemplo, em Romeu e Julieta (William Shakespeare) o superobjetivo é a união entre o casal de apaixonados, mesmo essa busca acabando em tragédia é a atração entre ambos que move os acontecimentos, até o fim. A inimizade entre as famílias é o conflito, o obstáculo que se interpõe entre eles.


Precisamos sempre dialogar com a direção pelo entendimento total do superobjetivo. A direção que se isola e não participa ao elenco sua compreensão sobre isso, sua visão sobre o filme, força uma atuação mecânica. Num cenário penoso como este, algumas atrizes e atores se rebelarão e criarão, também isoladamente, uma compreensão própria a respeito do superobjetivo, na tentativa de atender a necessidade de ter uma substância interior que impulsiona as ações. Quando isso acontece, a sintonia essencial dos personagens entre si e sobre a narrativa, é totalmente comprometida.


Esse equilíbrio geral, proporcionado pela clareza dos objetivos, é de inteira responsabilidade da direção. Os atores precisam ser conduzidos harmoniosamente, como uma orquestra onde cada músico toca sua parte separadamente, mas tudo se encaixa perfeitamente. Para isso, o elenco precisa ser regido pela direção, que estará à frente indicando o compasso individual que resultará na sinfonia. Se a direção não apontar o caminho certo, cada atriz e ator irá num rumo independente, destruindo qualquer possibilidade da comunhão essencial para que haja química entre os personagens.


A missão do elenco é interpretar com verdade os seus papéis e assim fazer com que o público se interesse por seus personagens, e a missão da direção é fazer com que os atores tenham certeza de quem são seus personagens e para onde devem ir. A direção não pode fazer o trabalho do elenco e o elenco não pode fazer o trabalho da direção. Para que as atuações alcancem um bom resultado, é essencial que cada um faça sua parte.


Tudo quanto foi dito neste estudo, direcionado a atrizes e atores, também deve ser compreendido também por diretores e diretoras. Não havendo a figura de uma preparadora ou preparador de elenco, a direção é quem precisa guiar os atores para um bom entendimento e performance. Uma direção que não compreenda caminhos de preparação do sistema, poderá inclusive atrapalhar os atores que tentem segui-los, por isso é importante um bom diálogo bem aberto entre direção já durante o processo de casting, esclarecendo quais caminhos metodológicos ambas as partes conhecem e quais serão adotados para a preparação do filme. Antes de se tornar diretor Stanislavski era ator e sem essa mistura o sistema provavelmente nem existiria.


No cinema a nível industrial existem muitos diretores que também atuam e isso, sem dúvidas, traz enorme ganho às suas produções. Um bom exemplo disso é Quentin Tarantino, que além de dirigir às vezes até atua em pequenos papéis nos seus próprios filmes. Isso é excelente, mas de forma nenhuma é pré-requisito para desempenhar a função de direção, também existem muitos diretores consagrados que nunca atuaram e isso não os impediu de realizarem filmes magníficos. Diretores não precisam atuar, mas é imprescindível que saibam preparar atores, especialmente nos contextos independente e iniciante, que dificilmente contam com profissionais dedicados exclusivamente à preparação do elenco.


Infelizmente, o mais comum em produções iniciantes e independentes, é que o elenco então fique à deriva pelo set enquanto aguardam o momento de entrar em cena, tomando cafezinho e conversando com os membros de outras áreas que estejam à toa ou tratando assuntos pessoais no telefone. Só quando toda a parafernalha está ajustada, a ponto de gravar, é que a direção se lembra que os atores existem. Passam horas a fio na preparação das outras áreas e poucos minutos de trabalho com as pessoas que representarão imediatamente diante das câmeras, carregando a imensa responsabilidade de fazer com que o público compreenda a história pela qual a equipe inteira do filme trabalhou. Abordagem lamentável, receita para o fracasso!


“A tarefa do diretor consiste em fazer com que o ator peça e procure os detalhes para fazer uma análise intelectual do papel. Desejá-los-á para a execução de objetivos reais.” (A Preparação do Ator, pág 356)


A intenção aqui não é desencorajar diretores em início de carreira, mas sim alertar para que se lancem com conhecimento básico sobre a preparação de atores e que entendam as prováveis consequências de negligenciar esse trabalho. Além de improdutivo, é antiético e injusto expor atores a um filme sem preparação, O elenco é literalmente quem dá a cara para bater ao aparecer no filme, pois apenas uma parcela muito pequena do público tem compreensão para saber que quando uma atuação não é boa a responsabilidade disso é, sobretudo, da direção. A maioria irá julgar os atores pelo desleixo e imaturidade da direção.


Ao lançar seu filme, a direção convida o público para ter um encontro com a sua visão e forma particular de contar aquela história. Ninguém gosta de ser convidado, de se arrumar e sair de casa, gastar com locomoção e ingresso para ter um encontro sem graça ou desagradável. Seja pelo sistema ou qualquer método, diretoras e diretores precisam se capacitar para honrar essa oportunidade de ter sua visão realizada e eternizada no mundo, através da linguagem cinematográfica.


A atuação precisa ser tão boa quanto a imagem, o som e as demais áreas de um filme. Não adianta ter uma fotografia exuberante, uma trilha sonora encantadora, uma cenografia maravilhosa, se a representação dos personagens não for boa, pois sem isso não será possível que o público se conecte e se emocione com os personagens… mas se a atuação for excelente, o público pode até superar possíveis falhas nas outras áreas, pois há possibilidade de construir relações parassociais com os personagens estará garantida.


Com isto concluímos esta adaptação da primeira parte do sistema, sobre o conteúdo de A Preparação do Ator, que não deve ser aplicada separadamente da segunda parte abordada em A Construção da Personagem, trazida a seguir.








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Bruna Vinsky

Produtora, formada em teatro, bacharelando em cinema e pesquisadora no campo da preparação

de elenco.

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