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  • Bruna Vinsky

Sistema Stanislavski — Parte II


“O seu gênio criador e artístico nunca estava inteiramente satisfeito. Até o dia de sua morte, instigou-o a buscar, pôr a prova, escolher novos caminhos de acesso à arte de representar, de modo que hesitava em fazer súmula de quaisquer conclusões como se fossem definitivas. Sempre esperava encontrar um caminho melhor para atingir sua elevada meta. Temia, ainda, que o seu registro escrito pudesse assumir o aspecto de alguma inalterável gramática, de regras rígidas, de uma espécie de Bíblia.” (nota da tradutora norte-americana Elizabeth Reynolds Hapgood, sobre Stanislavski)


Apresentação: Este projeto foi contemplado pelo

Edital de Fomento da Juventude do Fundo de Arte e Cultura de Goiás 2018.



UMA ADAPTAÇÃO DO SISTEMA STANISLAVSKI PARA

PRODUÇÕES INICIANTES E INDEPENDENTES DO CINEMA E AUDIOVISUAL

Parte II — A CONSTRUÇÃO DA PERSONAGEM

texto: Bruna Vinsky


“O ator deve trabalhar a vida inteira, cultivar seu espírito, treinar sistematicamente seus dons, desenvolver seu caráter; jamais deverá se desesperar e nunca renunciar a esse objetivo primordial: amar sua arte com todas as forças e amá-la sem egoísmo.” (Constantin Stanislavski)


A única razão para o autor não ter publicado o conteúdo dos dois livros em um único volume, foi para não atrasar totalmente a publicação ou para que não ficasse uma obra demasiadamente longa. Porém, os anos entre A Preparação do Ator (1936) e A Construção da Personagem (1948) e ainda o fluxo de seus estudantes indo espalhar as glórias dos aprendizados nos Estados Unidos, fizeram com que a primeira parte fosse difundida como a essência integral do sistema para todo o processo de preparação de atores proposto por ele, como conta a tradutora e amiga do autor em sua nota, muito esclarecedora, no início do segundo livro — importante destacar que Stanislavski publicou outros livros, mas, por questões metodológicas, escolhi abordar somente estes dois primeiros nesta pesquisa de caráter inicial.


Por mais que o autor tivesse consciência das possíveis problemáticas dessa divisão em dois volumes e fizesse seu possível para tentar evitá-las, todas elas se materializaram quando o sistema chegou aos Estados Unidos, onde o primeiro livro foi publicado antes mesmo de ser lançado na Rússia, formando uma legião de fervorosos artistas que estavam crentes de que A Preparação do Ator (1936) continha tudo que jamais precisariam. No segundo volume o autor segue a mesma técnica de narrativa ficcional com o personagem Tortsov, nas instruções contadas como fossem o diário de preparação das anotações tomadas por um dos estudantes, Kostia. É dito que Tortsov seria um alter ego de sua fase mais madura, já como diretor, enquanto Kostia o representava em seus primeiros anos como ator de teatro.


Este segundo volume traz em sua introdução (assinada por Joshua Logan) o relato de dois dois estudantes estadunidenses (não identificados) que, devido ao grande sucesso que a primeira parte do sistema fez nos estados Unidos, resolveram ir até a Rússia para ter com Stanislavski em seus últimos anos de vida, alegando que estariam ali na intenção de aprender diretamente com o autor e reproduzir fielmente quando retornassem a seu país. Ouviram dele que deveriam observar e colher apenas o que realmente lhes tocasse e usar isso como ponto de partida para descobrir formas próprias, adequando em consideração às particularidades da cultura americana, ao invés de optar pela mera repetição de algo que não se encaixava perfeitamente em sua realidade, já que o sistema estava imediatamente adequado à realidade russa — e mesmo assim passou por diversas modificações, algo que gerou insatisfação em alguns de seus alunos, fazendo com que se afastassem e fundassem suas próprias companhias onde puderam exercitar seu purismo e apego sobre as práticas anteriores do sistema, que seguiu se adaptando até o fim da vida de Stanislavski.


“Nunca devem contentar-se com o que um outro já fez. Vocês são americanos, tem um sistema econômico diferente; trabalham em horas diferentes; comem comida diferente e uma música diferente agrada os seus ouvidos. Vocês têm ritmos diferentes em sua fala e sua dança. E se quiserem criar um grande teatro terão que considerar todas essas coisas. Terão que usá-las para criar seu próprio método e ele poderá ser tão verdadeiro e tão grande quanto qualquer outro método que já se descobriu.” (A Construção da Personagem, pág. 17)


É justamente essa recomendação que norteia este estudo, que busca compreender e adaptar as técnicas do sistema à realidade do cinema iniciante, universitário e independente da atualidade, que raramente tem acessam serviços profissionais de preparação de elenco. Este estudo é dedicado a todos que fazem ou pretendem fazer seus filmes com pouco orçamento, para que tenham acesso a este caminho de preparação através desta adaptação simplificada do sistema para o cinema, permitindo-lhes acessar ferramentas de uma prática que foi revolucionária em seu tempo e até hoje continua sendo a principal base metodológica em escolas de preparação ao redor do mundo inteiro.


Então, se dentro do contexto do teatro o sistema determina a adaptação e continuidade na pesquisa por estímulos que provoquem em atrizes e atores o estado criador verdadeiro, da forma mais natural, inclusive culturalmente… o que dizer quando transportado ao cinema, uma linguagem bastante distinta do trabalho de palco? Mais uma vez, é nessa direção da tentativa de adaptação que este estudo aponta, não apenas num esforço de resumo sobre a obra do diretor russo.


A rara incidência do trabalho de preparação de atores nos filmes nacionais, notada em todos os níveis de produção, revela uma tendência negacionista sobre a importância do trabalho de preparação no Brasil. O primeiro argumento em resposta quando esta problemática é apontada nos debates entre realizadores do cinema nacional, é o das limitações orçamentárias. De fato, nem os orçamentos de nossos filmes mais caros se comparam aos gastos das produções hollywoodianas, especialmente no que diz respeito às produções a nível iniciante, mas muitas vezes essa carência tem mais a ver com falta de interesse ou conhecimento das direções a respeito da necessidade de preparar seus elencos.


Não há recursos para a cenografia? Para a fotografia? Para o som? Não há investimento em consumíveis e equipamentos essenciais de captação? Algum recurso para essas áreas tem de haver, e os realizadores do contexto iniciante precisam entender que quanto menor for o orçamento, mais precisarão compensar com investimento maior de tempo em dedicação a estudos formativos e planejamento da pré-produção. Não há tempo para escrita do roteiro? Não há tempo para estudos conceituais sobre estética e linguagem? Então, também precisa haver tempo para o estudo sobre preparação de atores. Se passarem a reconhecer esse trabalho como essencial, haverá e certamente isso elevará muito a qualidade dos filmes.


Afirmo isso com total segurança, pois tanto trabalhando como atriz quanto como preparadora, observei que todos os esforços no sentido de preparar o elenco frutificam e agregam positivamente à realização. Algumas vezes a comprovação disso me veio na forma de prêmios, em outras pelo reconhecimento pessoal de atores e diretores, gratos ao verem o salto que suas performances tiveram ao serem incrementadas pela preparação que desenvolvi usando das ferramentas do sistema. Me dedico a este estudo desejando que surjam muitos outros trabalhos, a serviço da conscientização dos realizadores sobre a necessidade do trabalho de preparação e da democratizando práticas que a possibilitem. Anseio pelo dia que a ausência da preparação de atores seja considerada tão crítica quanto a falta de uma câmera, pois então veremos um salto imenso na qualidade de nossas realizações.



CARACTERIZAÇÃO FÍSICA


Agora, já apropriados dos recursos para o trabalho interior em composição da essência do personagem, vistos na primeira parte do texto, podemos nos debruçar sobre os aspectos externos da preparação. Tenha em mente que este não deve ser um esforço à parte do anterior, pelo contrário, o sistema deixa bem claro que os dois trabalhos estão interconectados simbioticamente, estimulando um ao outro para alcance do estado criador e de uma experiência verdadeira do papel.


“[...] sem uma forma externa, nem sua caracterização interior nem o espírito da sua imagem chegarão até o público. A caracterização externa explica e ilustra e, assim, transmite aos espectadores o traçado interior do seu papel.” (A Construção da Personagem, pág 27)


Às vezes, quando o trabalho interno é verdadeiro e sólido, profundo, a forma externa se manifesta de maneira espontânea, vem do subconsciente, mas às vezes precisamos buscá-la, desenvolvendo de expressões físicas e feições que tornem o exterior do personagem mais fiel à essência humana que construímos para ele.


Um ótimo exemplo disso é a expressão desenvolvida por Marlon Brando para o papel de Vito Corleone no filme O Poderoso Chefão (1972), de Francis Ford Coppola. Inclusive, a carreira de Brando é repleta de personagens que demonstram resultados positivos da prática do sistema, especialmente nesse sentido de caracterização externa que reforça a compreensão da alma dos papéis. Veja abaixo como sua expressão foi modificada pelo uso de uma prótese dentária, um recurso em perfeita consonância com o que Stanislavski destaca logo no início de A Construção da Personagem, sobre as pequenas modificações transformadoras às quais podemos e devemos recorrer, caso agreguem ao personagem:



Uma proposta que Marlon Brando criou e levou consigo para o teste de elenco para esse papel.


Na proposta inicial, durante o teste, ele experimentou o enchimento das bochechas com chumaços de algodão e maravilhou o diretor com a ideia. Diante disso, Coppola não teve dúvidas de que ele seria perfeito para o papel e precisou lutar com o estúdio pela contratação do artista, que gozava da má fama de ser muito temperamental. Quando a decisão foi acertada, foi produzida a prótese ortodôntica fixa, garantindo segurança e estabilidade para o uso na interpretação ao longo do filme.



Embora com o passar do tempo incontáveis atores tenham construído carreiras de sucesso utilizando os ensinamentos do sistema, inicialmente muitos estadunidenses falharam em praticá-lo, pois tomaram a primeira publicação como verdade absoluta e conclusiva. Se engessaram nela com verdadeiro fanatismo e por isso não seguiam a recomendação de buscar o estado criador tanto pelo trabalho psicoemocional, quanto pelo físico. Isso se deu muito pela influência de Lee Strasberg à frente do Actors Studio, um grupo de teatro formado por ele e outros responsáveis pela vanguarda de renovação do estilo norte-americano de interpretação, inspirados pela onda do sistema Stanislavski que rapidamente cruzou continentes. Eles focaram no aspecto emocional do trabalho de preparação e o exagero foi tanto, que fez a prática precisar ser chamada de outro nome: método.


Há duas direções mais comuns entre atores que praticam “o método” americano “criado” por Strasberg e que se baseia quase exclusivamente na distorção do recurso de memória afetiva, proposta pelo sistema — já explicada na primeira parte deste estudo. Alguns ficam limitados a somente encenarem a si mesmos, usando sua própria personalidade cotidiana, inalterada, tornando-se conhecidos pela característica de ter sempre a mesma aparência, voz e expressão em todos os personagens. Outros mergulham tão fundo em seus próprios traumas ou na imersão de vivências parecidas com as do papel, para alcançar as expressões do personagem, que chegam a desenvolver transtornos e até surtar durante essa construção — às vezes carregando as sequelas desses processos por muito tempo após o fim do trabalho e até sendo permanentemente afetados.


E quem faz essa escolha, pelo método americano, está fadado ao fracasso? De forma nenhuma. Adam Sandler é um exemplo entre tantos atores bem sucedidos que praticam o método, é estimado que os filmes dele já renderam bilhões à sua produtora. Ele escolheu o desdobramento menos arriscado, entre os dois apontados acima, faz sempre a si mesmo e é reconhecido e adorado por seu público, justamente por essa característica de ter sempre trazem sempre as mesmas expressões em sua atuação. É uma escolha possível e promissora para quem tem personalidades naturalmente carismáticas.


Mas e quem se lança na completa exploração emocional de seus traumas e experiências negativas, buscando recursos emocionais para seus personagens? Um triste exemplo dos desdobramentos críticos onde este caminho pode desembocar, é o do ator Heath Ledger, que nunca mais foi o mesmo depois da imersão no personagem narcisista e sociopata, Joker, para o filme O Cavaleiro das Trevas (2008), de Christopher Nolan. O ator não só não se recuperou, como morreu de overdose algum tempo depois das gravações, antes mesmo do lançamento do filme. E este é apenas um de muitos casos de atores que se entregaram demais ao método, desconsiderando a própria saúde psicoemocional.


Queremos ser Brandos, Adams ou Ledgers? No primeiro temos grande diversidade entre personagens, no segundo uma atuação sempre igual e no terceiro uma profundidade por imersão arriscada. Particularmente, prefiro e recomendo um caminho mais na direção do primeiro, pois além de promissor ele se mostra bem mais profissional e saudável que os possíveis riscos de enveredar por métodos que pode levar a exaustão e sobrecarga do estado psicoemocional do artista, afetando inclusive sua vida pessoal.


Marlon Brando foi um dos pupilos mais bem sucedidos de Stella Adler, uma atriz, diretora e preparadora de elenco norte-americana que conheceu o método no Actors Studio, trabalhando junto com Lee Strasberg, mas rompeu com o mesmo ao notar as problemáticas nas distorções e exageros que ele fazia sobre o conceito de memória afetiva. Ela preferiu estudar pessoalmente com Stanislavski e incorporar o sistema por completo em sua prática. Tanto a linha de Stella quanto o método de Lee serão introduzidos, separadamente, nos outros textos e vídeos neste estudo, mas trago esta breve menção para que já se inicie na reflexão sobre os caminhos que se deseja tomar.


Enfim, continuando sobre o trabalho de caracterização física dos personagens através de recursos fisionômicos e corporais. Como encontrar as adições certas para nossos personagens? Das referências, tanto pessoais e internas, quanto alheias e externas, como colocou Stanislavski:


“Cada indivíduo desenvolve uma caracterização exterior a partir de si mesmo e de outros; tirando-a da vida real ou imaginária conforme sua intuição, e observando a si mesmo e aos outros. Tirando-a da sua própria experiência da vida ou da de seus amigos, de quadros, gravuras, desenhos, livros, contos, romances, ou de algum simples incidente, tanto faz. A única condição é não perder seu eu interior enquanto estiver fazendo essa pesquisa exterior.” (A Construção da Personagem, pág 32)


Questionamento constante e introspecção compreensiva são posturas fundamentais na busca pela imagem de um personagem. Para construir a aparência do papel de forma genuína, é preciso se atentar aos reflexos fisionômicos e gestuais que forem surgindo, subconscientemente, durante o processo de decupagem das emoções do personagem. Este sim é um trabalho para desenvolver isoladamente, aproveitando da privacidade para experimentar livremente, compartilhando as descobertas posteriormente com a direção, para que ela dê seu aval. Quando Marlon Brando trouxe para o teste a expressão icônica do poderoso chefão, diante da direção e equipe, ele já a havia desenvolvido antes, em solidão criativa.


Nos primeiros capítulos deste segundo livro Stanislavski usou o personagem do estudante Kostia, para demonstrar o processo aflitivo de busca pela expressão de um personagem. Na narrativa o diretor Tortsov pediu que a turma criasse e caracterizasse um personagem, com total liberdade criativa. Enquanto os colegas de teatro sabiam desde o primeiro momento a quem representariam, usando personagens famosos da dramaturgia como referência, Kostia teve um processo distinto, mais lento e original, inspirado por um figurino velho do acervo da companhia.


Só nos últimos momentos de preparação antes da apresentação foi que o ator, tomado por uma sensação de incompetência na execução da tarefa e já decidido a desistir de se apresentar, esfregou uma pasta verde por cima da maquiagem que havia feito e então, finalmente, teve a surpresa de se olhar no espelho e enxergar naquele borrão o personagem que se mantivera oculto dentro dele durante os dias que teve para se preparar. A inspiração só se revelou depois que o todos os colegas saíram em direção ao palco para se apresentar, pois no silêncio do camarim vazio ele pôde se expressar livremente. Por fim, ele se apresentou e foi o mais elogiado pelo diretor, sendo o único que realmente trouxe algo verdadeiramente sentido e original.


Nesse início o autor discorre mais uma vez, com maior detalhamento e precisão, sobre a segunda natureza, de ao mesmo tempo ter uma parte sua sendo o personagem e a outra observado e guiando-o. Ele fala da alegria que nos toma quando alcançamos o estado criador e adverte usa a apresentação de outra estudante para advertir sobre uma caracterização egocêntrica e vaidosa, que apenas ressalta nossos próprios atributos:


“Há uma grande diferença entre procurar escolher, em nós mesmos, emoções que se relacionem com o papel e alterar esse papel para que sirva aos nossos recursos mais fáceis [...] o caso é que você de fato gosta mais de você no papel do que do papel em você. Isso é um erro. Você tem capacidades. Você é capaz de mostrar não só você mesma como também um papel criado por você.” (A Construção da Personagem, pág 51)


E esse foi apenas um trecho da longa crítica que Stanislavski fez aos atores que se amparam exclusivamente em seus atributos físicos e também a todos aqueles que constroem personagens baseados em clichês, que usam os papéis para mostrar aquilo que desejam que vejam de si ao invés de mostrar o papel em si, avançando numa crítica que já havia feito em A Preparação do Ator, em relação aos que tratam a atuação exclusivamente como plataforma para sua vaidade pessoal. Sem eufemismos, julgou essa abordagem como débil e lamentável, o aborto dos personagens, pois nega ao público o direito de conhecê-los. Em geral, falou a todos que não trazem nada de original e verdadeiro a seus personagens.


  • EXERCÍCIO 11: escolha um personagem muito famoso e consagrado, como o Don Vito Corleone de Marlon Brando, e experimente tentar criar uma caracterização completamente original e distinta da usada no filme, criando seus trejeitos próprios, sem recorrer nem mesmo aos clichês do arquétipo — no caso do exemplo, o arquétipo de mafioso.


Depois do trabalho inteiro de descoberta e criação da essência interna do personagem através da decupagem (visto em UNIDADES E OBJETOS, na primeira parte deste texto), trabalhe na construção do seu exterior, sua fala, o seu modo de andar, suas feições, gestual, etc. Crie uma aparência e seja capaz de justificar tudo sobre ela, do figurino aos trejeitos, nada pode ser meramente estético, precisa fazer sentido e agregar valor dramático. Se um personagem veste uma blusa estampada, isso precisa estar ligado à sua personalidade, uma pessoa extremamente introvertida geralmente não veste uma roupa muito chamativa, que atrairá muita atenção e comentários, alguém mais reservado prefere tons mais neutros a fim de passar discretamente.


Esse esforço por criar uma segunda natureza para o personagem e encontrar uma estética particular para essa outra pessoa, que vive através de nós, permite que o papel seja muito além do que nós somos e sentimos. Seu emocional tem partida em nossas emoções, pois vem de nossa biblioteca emocional, mas as suas expressões são individuais, precisam ser próprias e diferenciadas.


Precisa interpretar um chefão da máfia, mas não conhece nada da vida de alguém assim? Não pesquise nos filmes, isso seria fazer uma cópia da cópia. Busque em biografias e notícias, que abordam pessoas reais sob tais circunstâncias. Pesquise mais de uma figura, para para que não seja uma referência muito direta a alguém específico. Depois dê seu toque pessoal ao que aprendeu pela história dessas pessoas reais, crie uma história de vida, princípios e personalidade particulares para este personagem, incluindo elementos seus ou usado a imaginação para compor com sugestões e suposições criativas.


“Assim, a caracterização é a máscara que esconde o indivíduo-ator. Protegido por ela, pode despir a alma até o último, o mais íntimo detalhe. Este é um importante atributo ou traço da transformação.” (A Construção da Personagem, pág 60)


  • EXERCÍCIO 12: tentar representar uma pessoa idosa, considerando todas as limitações de alguém de muita idade, como artrite e artrose que enfraquecem e fazem com que os movimentos precisem ser cuidadosos, limitados.


Observe pessoas idosas e pesquise sobre os sinais mais comuns de uma idade avançada. Por último, imagine-se como uma pessoa de 80 anos... quais dores você poderia ter, de acordo com seu estilo de vida atual? Ou com as dores de outro estilo de vida, quando tivermos um papel em mente ou queiramos experimentar uma construção mais avançada com base em alguma referência de papel já existente. O importante é se lembrar dos mágicos “e se?” e deixar a imaginação fluir diante das circunstâncias. Mas lembre-se da regra dos “menos 90%” para não cair na caricatura, não elenque todos os gestos e condições da idade avançada, vá para além dos reflexos mais batidos, dos estereótipos e dos clichês.


Expanda as experimentações sobre este exercício, elas devem ser constantes. Para isso use o dispositivo de improvisação indicado no início da primeira parte deste estudo. Varie esse exercício com outros arquétipos, diferentes tipos de pessoas e condições, acrescente seu toque pessoal à criação.



EXPRESSÃO CORPORAL


Além da imaginação, qual é o instrumento imediato do ator, considerando seu trabalho de desenvolver e representar vidas humanas? O mesmo necessário a qualquer alma, para se manifestar materialmente neste mundo: o corpo!


“Os exercícios contribuem para tornar a nossa aparelhagem física mais móvel, flexível, expressiva e até mais sensível.” (A Construção da Personagem, pág 71)


Precisamos estar sempre preparados. Da mesma forma que devemos trabalhar constantemente a criatividade, através dos estímulos criadores, precisamos condicionar nosso corpo garantindo-lhe saúde e condicionamento para os personagens que nos venham. É claro que papéis muito específicos podem carecer de tempo e processos especiais de preparação, para o alcance de determinada forma física e movimentação, mas, no geral, precisamos estar prontos: hábeis, flexíveis, enérgicos e bem dispostos.


Não é só a voz limpa e o olhar concentrado que precisam estar afinados, da mesma forma o corpo precisa estar forte e aquecido antes de entrar em cena, ensaiar ou praticar os exercícios. A prática de yoga e alongamento são ótimos para dar tônus e flexibilidade, além de não requererem o uso de equipamentos além do corpo. Exercícios cardiovasculares como bicicleta, natação, corrida, pular corda ou caminhada são essenciais para ter bom fôlego.


Tudo o que atrizes e atores acumulam de experiência serve a seus personagens. Uma aula de dança agrega enorme valor e recursos ao nosso potencial físico, concede postura e equilíbrio, assim como uma aula de canto favorece nosso desempenho vocal. E estes são apenas alguns exemplos de poderosos recursos adicionais, que acrescentam tanto à nossa prática quanto somam em nossos currículos. E o que não acontece quando atores e atrizes não desenvolvem potenciais extras? Como talentos se atrofiam e limitam, tornando-se mais passíveis a serem preteridos nos testes de elenco.



PLASTICIDADE DO MOVIMENTO


“A energia, aquecida pela emoção, carregada de vontade, dirigida pelo intelecto, move-se com orgulho e confiança, como um embaixador em uma missão importante. Manifesta-se na ação consciente, cheia de sentimentos, conteúdo e propósito, que não pode ser executada de modo desleixado e mecânico mas deve ser preenchida de acordo com os seus impulsos espirituais. Fluindo pela rede do nosso sistema muscular, despertando nossos centros motores interiores ela nos incita à atividade exterior.” (A Construção da Personagem, pág 87)


Na vida podemos ter gestos e posturas incorretas que são agressivas ao corpo, como a coluna curvada que pode provocar fortes dores. Fazemos isso por falta de consciência de nós mesmos e do que a natureza intendeu sobre a condição humana saudável. Então, quando entramos em cena e subitamente nos tornamos conscientes da exposição e registro sobre nós, é um reflexo automático que busquemos assumir uma forma ajeitada, diferente da nossa postura cotidiana. O problema é que o imaginado como “correto” nem sempre é natural, e se não for natural não serve ao trabalho de cena — a menos que a forma fingida, tesa, seja uma expressão necessária ao papel, atendendo imediatamente à interpretação consciente.


Para que a nossa boa postura em cena seja natural, é preciso cultivar uma postura adequada fora de cena, cotidianamente em nossas próprias vidas, e então emprestar isso aos personagens conforme necessário. Só assim é que escapamos de pender a gestos forçados, vazios, mecânicos e sem verdade. Quem não traz isso naturalmente, precisa exercitar e trabalhar para desenvolver uma boa postura.


“Precisamos é de ações simples, expressivas, com um conteúdo interior. Onde iremos encontrá-las?” (A Construção da Personagem, pág 86)


É como o sistema coloca, repetidamente: enquanto atrizes e atores, nosso trabalho não pode ser resumido aos momentos de encenação durante as gravações. Precisamos nos exercitar, praticar as ferramentas de preparação. Se deixarmos para nos aprumar e experimentar apenas instantes antes de entrar em cena, sem muito tempo para um trabalho aprofundado de experimentação, ficamos propensos aos gestos mais óbvios, aqueles que primeiro vem à mente, clichês. Precisamos da exploração anterior, com fartura de tempo para encontrar as expressões corretas e fazer os ajustes necessários. Isso não cabe dentro do andamento de um set, onde tudo é minuciosamente planejado para atender ao cronograma de gravações.


Embora haja possibilidade de repetir uma cena mais de uma vez, não é possível fazer isso a perder de vista com cada uma das cenas do filme. Às vezes a direção terá que decidir seguir em frente e usar a atuação que foi possível de primeira, para não comprometer e impossibilitar a realização devido aos atrasos imprevistos. Quando o roteiro de uma produção de nível iniciante tem uma cena que envolve a passagem de um trem, por exemplo. Toda equipe ficará a postos, aguardando para conseguir gravar a cena nessa oportunidade única, já que nesse contexto não há orçamento para pagar algo tão custoso quanto a diária de um trem. O elenco precisa estar afiado para momentos como este, onde só há uma chance para fazer a atuação valer.


No exemplo acima a equipe teria que chegar bem antes do horário de passagem do trem e se aprontar, ensaiar várias vezes para garantir ao máximo o êxito no momento da ação. Se no teatro não existe encenação de peças sem ensaios, então por que no cinema muitas vezes é considerado aceitável nos lançarmos em total improviso? Pesquisa, estudo, experimentação e ensaio, sempre!


Seus pés são levemente voltados para dentro? A menos que o personagem exija essa postura ela não será adequada ao papel, será preciso treino e em alguns casos até fisioterapia — como pessoalmente foi meu caso. Sobre questões mais simples, na internet mesmo encontramos toda sorte de exercícios básicos para uma boa postura, um bom caminhar. Quem não tem muita predisposição à consciência corporal e não conseguir avaliar a si próprio, precisará buscar avaliação de profissionais capacitados, da área da saúde e desempenho físico.


A essa altura do sistema, ele instrui detalhadamente sobre toda forma de movimentos, jeito correto de andar, postura da coluna. As instruções de Stanislavski são ótimas, mas, como ele mesmo disse, são adaptadas ao seu tempo, local e circunstância, ou seja, à Rússia de quase um século atrás. Isso não é algo que eu possa adaptar sem estar certa das condições de quem terá acesso a este estudo, por isso indico que busquem por conta própria, de acordo com suas necessidades. Inevitavelmente, cada artista precisará trabalhar de acordo com as suas possibilidades, necessidades e habilidades, o que posso indicar com certeza é que devemos sempre buscar a expansão de nossas capacidades, mas sempre respeitando as limitações naturais e prezando por nossa saúde.


Cada um deverá escolher seus próprios meios para uma boa postura e flexibilidade, mas alguns exercícios do sistema são interessantes demais para serem dispensados. A exemplo deste abaixo, de equilíbrio, que foi um dos que mais usei durante minha formação em teatro e sempre foi de grande serventia:


  • EXERCÍCIO 13: imagine uma “bolinha imaginária” e tente equilibrá-la da ponta de um dedo da mão até chegar no dedão do pé, Tente não deixar “cair”, mas alimente a imaginação de forma coerente, se achar que um movimento derrubou a bolinha, “junte” e recomece. É um gesto parecido com o que os jogadores fazem equilibrando a bola de futebol pelo corpo. Primeiro faça lentamente e depois experimente em diferentes velocidades, altere a densidade da bola imaginária e faça o corpo reagir a tais mudanças, já que o pedo do que carregamos altera nossa postura. Experimente também ouvindo música, adequando o movimento corporal de equilíbrio ao ritmo do som.


“É essa moção que cria fluência, a plasticidade de movimento corpóreo que nos é tão necessária.” (A Construção da Personagem, pág 107)


Precisamos usar nossa criatividade para ter fé cênica de verdade na bolinha imaginária, a ponto de acreditar que ela cairá se interrompermos minimamente o esforço de equilíbrio. Se não trabalharmos dessa forma a conexão se perderá e o exercício não surtirá efeito. Assim como precisamos de uma linha contínua de concentração interior, mantendo nossa mente numa experiência ininterrupta do personagem, precisamos cultivar uma linha contínua e ininterrupta também na movimentação externa, senão a expressão corporal ficará repleta de interrupções prejudiciais à atuação.


“A própria arte se origina no instante em que essa linha ininterrupta é estabelecida, seja ela de som, voz, desenho ou movimento. Enquanto houver, separado, apenas sonhos, exclamações, notas, interjeições em vez de música; ou linhas e pontos separados em vez de um desenho; ou arrancos espasmódicos separados em vez de movimento coordenado — não se pode falar em música, ou canto, desenho ou pintura, dança, arquitetura, escultura, nem, finalmente, em arte dramática.” (A Construção da Personagem, pág 103)


Não existe bola, nossa capacidade artística não depende desse nível de equilíbrio literal, por isso usamos uma bolinha imaginária. A importância desse exercício é o fluxo de concentração física, que colabora imediatamente com a concentração interior, ambas são interligadas e indivisíveis. O objetivo é desenvolver o senso de um fluxo energético contínuo.


“Esta linha interior vem dos mais profundos recessos de nosso ser, a energia que ela engendra está saturada de estímulos das emoções, vontade e intelecto.” (A Construção da Personagem, pág 107)



CONCENTRAÇÃO E CONTROLE



Por mais talentosos que sejam, a falta de concentração leva atores e atrizes ao excesso — em alguns casos, isso acontece em função da vaidade e exibicionismo. Se isso já é danoso na atuação de teatro onde o plano é sempre geral, imagine na linguagem cinematográfica e audiovisual que tem o recurso de planos fechados, para detalhamento de gestos? Exagero gestual detona a atuação e precisa ser combatido, pois o excesso distrai o público das ações realmente importantes para o papel. O ator deve dominar seus gestos ao invés de ser controlado por eles.


Todo o trabalho do sistema gira em torno de acessar o estado criador, de onde brotam reações verdadeiras em uníssono com a alma do personagem, através de nossa biblioteca emocional e imaginação. Então, precisamos conter o gestual evitando exageros para que a ação verdadeira se manifeste, orgânica e equilibradamente, através de todo conjunto expressivo que inclui voz, movimento corporal, expressão facial e a energia sutil que transmite o estado interior.


“É possível que apareça um diretor de talento, diga uma só palavra e o ator se incendiará, fazendo brilhar o papel com todas as cores do prisma de sua alma.” (A Construção da Personagem, pág 119)


Com isso mais uma vez Stanislavski destaca a importância da influência da direção sobre os atores, de forma instigante que provoque faíscas inspiradoras. A direção é como a regência de uma orquestra, se o trabalhar de forma apática e mecânica o elenco a seguirá no mesmo tom apático, mas se conduzir de forma ativa e entusiasmada, irá inspirar os atores. A direção não deve fazer como gostaria que fosse feito, esperando que lhe imitem, a maneira correta de estimular é pelas palavras, através das sugestões criadoras, facilitando que os atores encontrem o sentimento verdadeiro da emoção desejada e o expressem à sua maneira.


Cabe à direção a conferir a afinação de cada atuação, regendo atores rumo à unidade individual ao mesmo tempo que à comunhão geral, pois, estando de fora da experiência do personagem, é quem pode e deve perceber com mais clareza se a performance está achatada sob um mesmo tom ou se apresenta as variações dramáticas que lustram a boa atuação. Assim como o ator precisa exercitar seu corpo e alimentar sua alma, para ter uma vasta biblioteca emocional que irá enriquecer sua atuação, a direção precisa cultivar um olhar e escuta sensíveis, para ser capaz de conduzir o elenco.



A DICÇÃO E O CANTO


“Pense quanta coisa pode-se concentrar numa palavra ou frase, como é rica a linguagem. É poderosa, não por si mesma, porém, na medida em que transmite a alma humana, a mente humana.” (A Construção da Personagem, pág 130)


A voz é tão importante quanto as outras formas de expressão, porém ela carrega o peso de evidenciar tudo através das falas do roteiro. É necessário ter atenção especial sobre nossa dicção, entonação e ritmo, pois qualquer alteração indesejada nestes elementos pode alterar o sentido das palavras. Assim como precisamos experimentar a movimentação corporal e exercitar a capacidade criativa através da imaginação, devemos fazer com nossas vozes. De quantas formas e entonações diferentes é possível dizer a mesma frase, atribuindo-lhe cargas emocionais distintas?


  • EXERCÍCIO 14: escolha uma frase curta e experimente dizê-la de variadas formas, alternando os pontos de pausa, respiração e entonação, acrescentando a cada versão sentimentos internos distintos (sorteados do dispositivo de improvisação) e as diferentes expressões que os acompanham — para ir além e aprofundar mais o exercício, pode-se sortear mais elementos do dispositivo, das outras categorias, a fim de incrementar o estado interior.


A frase “Essas coisas acontecem, sem querer!”, por exemplo, pode ser dita numa variedade enorme de intenções. Serve tanto para uma declaração de amor, quanto para uma desculpa por traição, situações completamente opostas. As palavras são as mesmas, mas o que não pode se repetir entre as duas situações é o tom, pois cada uma pede tempo e ritmo distintos. Em uma, a voz de emoção aliviada de quem tira do peito um querer secreto, na outra, o nervosismo afobado de quem tenta explicar uma atitude desleal. O objetivo interior que a fala carrega depende do contexto narrativo, sim, mas mais ainda da forma como é dita.


Usando o exemplo acima, devemos encontrar meios de expressar o alívio ou a angústia particular a cada uma das duas circunstâncias, enquanto a direção deve confirmar se a ação está transmitindo o sentimento correto e propor ajustes quando não estiver. Na vida, eventualmente nos expressamos de maneiras que não são fiéis às nossas intenções, mas na atuação isso só pode existir se o mal entendido for parte da história. Do contrário, estaremos indo contra os objetivos e isso irá confundir o público. Às vezes uma única frase ou palavra carrega a missão de significar todo o sentido do filme, por isso que as falas precisam ser totalmente certeiras.


“Assim como os átomos entraram na formação de todo um universo, os sons individuais transmitem palavras; as palavras, frases; as frases, pensamentos; e com os pensamentos se formam cenas e atos inteiros [...] a vida trágica de uma alma humana.” (A Construção da Personagem, pág 130)


Isso quer dizer que precisamos esmiuçar cada palavra pronunciada? Se o impulso criador estiver profundamente alinhado com a verdade do personagem, é provável que boa parte da expressão vocal flua coerentemente, sem muito esforço, dispensando a necessidade de trabalhar cada palavra de todas as falas do papel. Mas não podemos achar que todas as expressões serão as melhores possíveis logo de primeira, várias partes precisarão sim de uma atenção maior.


Lembre que o sistema se baseia numa lógica de experimentação, o esforço faz parte do processo em busca por uma interpretação de maior qualidade e profundidade. Devemos experimentar com nosso texto até encontrar o que melhor se adeque à emoção do papel, no momento de cada fala, e a boa dicção garantirá que a fala sob emoção correta seja compreendida. Quando não pudermos contar com o amparo profissional de uma fonoaudióloga, novamente teremos que pesquisar e estudar individualmente, de acordo com nossas necessidades. Existem muitos conteúdos on-line que trazem orientações profissionais sobre exercícios que podem ser praticados por todos.


De acordo com Stanislavski, precisamos entender as letras como símbolos sonoros, relembrando a pronúncia do alfabeto e repetindo várias vezes cada letra para entender o mecanismo vocal individual de cada uma. Quais tem som abafado ou aberto, alongado ou curto, em qual a língua toca o céu da boca ou fica entre os lábios? A consoante “b”, por exemplo, vem da explosão dos lábios e sem isso seria um “e”. Outras pessoas talvez não precisem pensar tanto nessas coisas, mas para atores toda sorte de detalhes comportamentais e expressivos são essenciais e agregadores, indispensáveis.


  • EXERCÍCIO 15: escolha uma sílaba qualquer (por exemplo BA) e experimente pronunciá-la variando as emoções (sorteie no dispositivo de improvisação) de acordo com cada sentimento sorteado, encontre várias formas de pronúncia para cada sentimento. Depois, experimente adicionar uma terceira letra à sílaba trabalhada e note como as potencialidades da pronúncia variam ainda mais, em relação a todas as anteriores. Perceba como cada símbolo sonoro traz sentidos diferentes, atraindo novas emoções.


Ao mesmo tempo que precisamos conhecer a pronúncia correta de cada som, também precisamos falar com naturalidade, mais um paradoxo que faz parte da atuação e se naturaliza conforme praticamos. Há ainda personagens que exigirão uma fala menos afinada, mais coloquial ou regionalista, mas de todo modo precisamos ser dotados de uma base neutra a partir da qual modificamos, incluindo os adereços particulares que o papel requer. Lembrando ainda que o padrão de neutralidade vocal pode variar, dependendo da região geográfica e da percepção de cada diretora ou diretor.


Se você estiver em busca de alguma coisa, não vá sentar-se na praia à espera de que ela venha encontrá-lo. Você tem de procurar, procurar, procurar com toda sua obstinação!” (A Construção da Personagem, pág 147)


A boa dicção é algo a ser praticado a todo momento, para que se torne um reflexo natural e orgânico. A fala é uma das ferramentas mais poderosas na transmissão das nuances dos pensamentos e sentimentos dos personagens. Precisamos fazer de nosso cotidiano a nossa sala de aula de dicção, através da observando e ajustando, emprestando do exemplo musical a rítmica de uma fala em linha ininterrupta. É, novamente, o treino cotidiano forjando o preparo.


Uma maneira de facilitar que os atores tenham uma noção antecipada das distâncias entre si e os equipamentos de captação, é que a direção compartilhe com o elenco o storyboard — decupagem do filme quadro a quadro, estilo “quadrinhos”, que traz o planejamento da fotografia, plano a plano — do filme. Os microfones costumam ficar no entorno do enquadramento, o mais próximo possível sem que apareçam no quadro. Visualizando os planos que serão feitos pela fotografia, o elenco poderá estimar se a intensidade vocal das falas estarão adequadas aos padrões de captação. É interessante fazer testes de captação antes das filmagens, isso evitará que na hora da cena a direção precise fazer ajustes que podem prejudicar a performance, que já estava esquematizada. Isso tudo é muito útil às atrizes e atores, além de proporcionar uma economia do tempo de set.


Convém que, além do elenco, cada chefe de área receba uma cópia do storyboard ainda na pré-produção, para que tenham noção básica dos planos, já que todos trabalharão em função dessas marcações durante as gravações. Todo filme, por mais amador que possa ser, deve ter essa decupagem visual. Não é mandatório que os desenhos sejam profissionais, até com “bonecos de palito” se faz um storyboard.


ENTONAÇÕES E PAUSAS


Precisamos de muita atenção para identificar nossas falhas verbais, elas não são fáceis de perceber pois são condicionamentos que trazemos de uma vida inteira. É difícil, sim, mas precisamos conhecê-las, é parte do trabalho. Se preciso, devemos gravar algumas conversas nossas (devidamente autorizadas pela outra parte) com pessoas próximas, pois nesse tipo de prosa mais íntima costumamos falar com nossa voz habitual, de forma natural e despreocupada, sem forçar nada. Depois poderemos escutar com calma, tomando nota das letras, sílabas e palavras que precisamos trabalhar com maior cuidado.


Mas não é só o artifício da fala que precisamos observar. No cotidiano oferecemos uma escuta naturalmente atenciosa, pois não sabemos o que vão nos dizer, precisamos prestar atenção. Stanislavski afirmou que esta mesma atenção deve ser cultivada na experiência cênica. Precisamos aprender a contornar o fato de que sabemos o que vai acontecer na narrativa, ter real atenção pelas suas falas dos colegas de cena, para poder entrar em comunhão e nos adaptação durante os diálogos.


“Enquanto o aluno vai recitando alguma coisa que aprendeu de cor, muitas vezes está pensando em seus próprios assuntos e na nota que o professor lhe dará. Os atores são propensos a esses mesmos costumes.” (A Construção da Personagem, pág 162)


É bastante comum ver atores que atropelam as falas uns dos outros, simplesmente porque as vêem como meras deixas nas quais entrar com suas próprias falas. Esse é um sintoma de desconexão total da alma do personagem, um dos ponteiros que indicam a falta de comunhão em cena. O subtexto é a ferramenta à qual devemos nos apegar para driblar essa fala mecânica dos textos, pois carrega a compreensão e significância dos objetivos, circunstâncias gerais da história, objetos de atenção e todos os elementos interiores, é o que dá sentido às falas.


“Somente quando os nossos sentimentos mergulham na corrente subtextual é que a “linha direta de ação” de uma peça ou de um papel passa a existir.” (A Construção da Personagem, pág 164)


O subtexto está para a linguagem, assim como a linha direta está para a ação física. Enquanto a linha direta é o trilho interior psicológico da ação que conduz ao superobjetivo, o subtexto é o trilho das falas. Então, precisamos novamente decupar e extrair as emoções das falas em relação aos objetivos, devemos estudar as palavras e as sensações que elas trazem. Ambos processos estão interconectados e se complementam.


Nessa parte do livro A Construção da personagem, Stanislavski dá uma pequena frase sugestiva aos estudantes, à qual respondem com ricas descrições de lugares e situações para as quais foram transportados pelo estímulo proporcionado pelo. Provocar a imaginação a alcançar a compreensão da bagagem emocional e particular que cada palavra nos evoca, é o objetivo deste exercício:


  • EXERCÍCIO 16: Sortear palavras do dispositivo de improvisação, na categoria de objetos, e compreender o que cada uma traz, tomando nota do que nos fazem recordar, sentir ou visualizar conforme são pronunciadas. (Pág 166)



“Se no palco vocês sempre passassem por esse processo normal e pronunciassem as suas palavras com essa mesma afeição, essa mesma penetração do seu sentido essencial, logo se tornariam grandes atores.” (A Construção da Personagem, pág 167)


Stanislavski usou as palavras justiça e direito nessas sugestões dadas aos estudantes, para instigá-los à compreensão de subtextos das palavras. A alegoria figurativa que a minha imaginação forma para elas é a de uma gaiola de pássaros com sua portinhola aberta e um sabiá voando para fora dela. Essa imagem é da minha própria biblioteca emocional, condiz com a minha personalidade e visão de mundo. Outra pessoa, que goste da idéia de pássaros aprisionados em gaiolas, não poderia ter essa visão associada às palavras justiça e direito, pois, para ela o vôo do pássaro que visualizei em minha imaginação seria pesaroso ao invés de significar justeza. Talvez minha imagem mental lhe causasse algo melhor representado por palavras como perda e vazio.


Cada um vai ter uma percepção pessoal e única sobre cada palavra, dependendo de seus ideais e experiências de vida. Atrizes e atores que têm essa compreensão, jamais vão dar à interpretação de personagem clássico a mesma leitura que célebres atores do passado deram, farão à sua própria maneira. Carregarão os mesmos sentidos essenciais dos objetivos, mas sob seu olhar particular e aplicando seu toque pessoal à atuação. É isso que o sistema busca nos proporcionar, esse é o verdadeiro trabalho criador.


“Ouvir é ver aquilo que se fala; falar é desenhar imagens visuais. Para o ator uma palavra não é apenas um som, é uma evocação de imagens. Portanto, quando estiver em intercâmbio verbal em cena, fale menos para o ouvido do que para a vista.” (A Construção da Personagem, pág 169)


Antes de falar precisamos formar uma imagem mental do que dizemos, assim conhecemos e nos relacionamos com as palavras de forma mais profunda. Precisamos compor todo o subtexto relacionado às circunstâncias, formando um esboço mental do que dizemos, do contrário tudo sairá sem substância, o texto será vazio, sem verdade ou sentimento. Esse é o tipo mais comum de atuação, e o mais indesejado. Não teríamos também na vida uma realidade mental paralela, onde tecemos um esboço baseado em nossos desejos e expectativas? Assim precisa ser na experiência do papel, sempre a arte imitando a vida. Se não reproduzirmos para o personagem esse mecanismo humano, subconsciente e orgânico, ele não terá vida própria.


“Portanto, quando mantemos em mente essas imagens interiores, pensamos no subtexto do nosso papel e o sentimos.” (A Construção da Personagem, pág 178)


Estaine Alencar, um querido amigo meu do Rio de Janeiro, sem dúvidas estava plenamente consciente desse recurso de crença na própria fala e de como transmitir sua visão mental aos outros. Praticamente todos os dias, durante nossa formação em teatro, ele contava alguma lorota impressionante e segundos depois caia no riso ao ver que todos nós havíamos acreditado, mais uma vez, em algo estrambólico que ele acabara de inventar para se divertir às nossas custas. Em dois anos e meio estudando juntos, nenhuma vez sequer previ a mentira nos causos ou informações falsas que ele contava e desmentia aos risos instantes depois, era um talento impressionante e que no fim das contas divertia toda nossa turma.


Nunca cheguei a perguntar ao Estaine se ele fazia aquilo por conhecer a indicação do sistema de Stanislavski — que era parte dos conteúdos da Companhia de Teatro Contemporâneo, onde estudamos — ou se ele extraiu de alguma ramificação que adotou o tal conceito. Vai ver era simplesmente um dote natural dele, para dizer o que quisesse com verdade e naturalidade, fazendo todos crerem. Fosse por instrução obtida ou por inspiração própria, ele praticava constante e eximiamente isso que precisamos desenvolver para alcançar esse estado, que um dos estudantes descreve da seguinte forma na narrativa de Stanislavski:


“Assim que as palavras se tornaram minhas, fiquei inteiramente à vontade [...] um sentimento maravilhoso, conseguir governar-me, ter conquistado o direito de não me apressar, de calmamente fazer com que os outros esperassem! Plantei uma palavra depois da outra na consciência do meu objeto e com elas fui transmitindo uma conotação esclarecedora após outra.” (A Construção da Personagem, pág 174)


Com certeza a sensação que o amigo Estaine sentia ao contar suas lorotas era parecida com essa, por justo daí vinham as gargalhadas que ele dava antes de revelar que mais uma vez fomos encantados por sua magnífica crença na própria fala. Todos riamos juntos, tanto da graça de cair mais uma vez, quanto de admiração por sua capacidade.


“Você pode avaliar melhor do que ninguém a significação e as ilações da calma e controle que senti hoje, pois bem sabe o medo que nós dois sentimos quando temos que fazer pausa em cena. Aliás, não eram realmente pausas, porque mesmo quando estava calado, não deixei nunca de estar em atividade.” (A Construção da Personagem, pág 174)


Apropriar-se das palavras não quer dizer decorá-las, é fazer com que elas encontrem uma imagem e um lugar no tempo certo, dentro da cena. Esse segundo trecho em descrição do estado de crença na própria fala, demonstra o nervosismo que em algum ponto (ou sempre) qualquer ator desconcentrado sente, e também o antídoto para eliminá-lo: nunca deixar de estar em atividade na experiência de vida do personagem.


A consciência nas ações, pensamentos, desejos, ambições, sentimentos e tudo mais que compõe a vida interior do papel, é o que firma a atenção e elimina os vacilos e lacunas, que desconcentram e empobrecem a atuação. E essa não é uma missão fácil, porque a memória das emoções — um dos elementos do subtexto — é bastante instável, esquiva e até caprichosa, mas é o que precisamos buscar através da decupagem do subtexto. Esmiuçamos cada fala para que o resultado em cena seja crível não apenas para nós mesmos, mas também para nossos colegas de cena e consequentemente para o público.


O encontro da pausa na altura correta da fala é essencial pois é o que irá garantir a compreensão correta, para isso consideramos a respiração e o sentimento que as palavras carregam. Experimentamos até que a melhor forma de falar seja encontrada, sempre tendo em mente os impulsos interiores do personagem. Além das pausas dramáticas temos que considerar a pontuação, pois a entonação da vírgula não é a mesma que a de um ponto final, exclamação ou interrogação. Tudo isso deve ser experimentado na decupagem do subtexto das falas.


Existem dois tipos de pausas necessárias dentro da atuação. A pausa lógica é gramatical e modela as falas tornando-as compreensíveis, é passiva, formal e inerte, enquanto a pausa psicológica dá vida aos pensamentos, frases e orações transbordando rico conteúdo interior. A pausa lógica serve à razão, enquanto a pausa psicológica serve às emoções. Uma pode puxar a outra, é natural, mas se a pausa psicológica dominar esquecemos o que tínhamos a dizer e afundamos nas imagens emocionais, que tomam conta da mente em excesso. Todo mundo alguma vez já teve a experiência de fazer uma pausa no meio de uma fala, mergulhando na visualização de um ponto específico do que estava dizendo a ponto de se perder da linha de raciocínio. É isso que precisamos tentar controlar e evitar que aconteça. Para além disso, a comunhão entre as duas é ótima, é o ideal.


Stanislavski esclarece que a pausa psicológica é um silêncio eloquente, que pode dizer muito mesmo sem uso verbal. Nela falamos com o olhar, com a respiração, com gestos. Por exemplo, alguém que interrompe a própria fala, respira fundo e coça a cabeça, demonstra preocupação, insegurança. Alguém que interrompe a fala, deixa o olhar cair e depois ascende e sorri, demonstra embaraço, acanhamento. Muito pode ser dito nas pausas dramáticas, pela nossa emoção interior que nesse momento irrompe o silêncio e alcança os outros, pela transmissão de energia sutil, por isso elas são extremamente potentes e necessárias. A inação dramática, vista em FÉ E SENTIMENTO DE VERDADE, na primeira parte deste texto, faz parte da pausa psicológica..


“A pausa psicológica invade com ousadia pontos em que uma pausa lógica ou gramatical pareceria impossível.” (A Construção da Personagem, pág 193)


Mas não podemos confundir pausa psicológica ou pausa lógica com arrastamento, se a pausa não atende ao superobjetivo e ao desejo de fazer com que o outro nos compreenda, ela não é nem uma e nem outra, não deve existir. Nesse caso a pausa é mera lacuna, interrompendo as linhas de concentração física e mental, que precisamos manter ininterruptas em função de uma experiência verdadeira do papel. As pausas biológicas, para respiração, devem acontecer com a mesma naturalidade que temos na vida, ligeira e sem teor dramático — mas há momentos em que fundir esta forma às outras duas é possível, depende da narrativa, do momento da cena e da capacidade de não fazê-lo soando artificial.


  • EXERCÍCIO 17: escolha uma frase e diga primeiro de forma corrida, sem pontuação ou pausas de nenhum tipo, depois experimente encontrar a posição das pausas lógicas que ela poderia ter, repetindo de formas diferentes até encontrar o tempo de fala que melhor transmita a emoção que a frase precisa entregar (pode sortear emoções no dispositivo, depois de escolher a frase).


Nada ilustra melhor o poder dramático das entonações, pausas e ritmo de fala que a emoção sentida por uma música ouvida em uma língua estrangeira que não compreendemos e ainda assim nos causa sensações de significados análogos à letra. Mesmo sem entender uma só palavra, podemos nos emocionar de formas profundas que conseguem passar os sentimentos das palavras só pela entonação, pausas e ritmo.


A entonação correta é resultado do estado interior correto. Se tentarmos dar poder à fala apenas aplicando esforço físico a ela, caímos na atuação mecânica, tensionando nosso corpo e deixando escorrer o estado criador. Toda potência da fala precisa vir do interior dos personagens, de seus objetivos e não do nosso desejo pessoal de impressionar a quem nos escuta. Isso é exibicionismo, não é atuação. Sei que repito estes pontos, mas sei também que o faço apenas uma fração do tanto que o sistema os reitera. Acredite, não é insistência à toa, precisamos mesmo fixar estas noções para assimilá-las no processo de preparação.


O mais importante não é como a gente se escuta, mas como o outro nos escuta. Por isso, se for praticar estes exercícios solo, é interessante gravar a prática em vídeo para se observar da perspectiva de quem recebe nossas falas.


  • EXERCÍCIO 18: escolha uma frase e a pronuncie, repetindo com toda intensidade física (podendo chegar aos berros), sentindo seu corpo se enrijecer. Em seguida, pegue a mesma frase e desenvolva uma justificativa interior para ela, crie circunstâncias imaginadas que atribuirão sentimento e subtexto à frase, depois respire fundo, relaxe e diga a frase novamente sob a emoção interior definida e perceba a diferença. Experimente a mesma frase com diferentes sugestões emocionais.




ACENTUAÇÃO: A PALAVRA EXPRESSIVA


Não existe nada mais tedioso do que uma atuação plana, onde as falas são dadas sempre com a mesma entonação, sem delinear os altos e baixos dos significados e emoções que elas carregam. Isso deve ser evitado a todo custo, a menos, claro, que se precise interpretar o tédio que existe num personagem.


“A gente não pode desperdiçar levianamente as acentuações! Uma ênfase mal colocada distorce uma palavra ou aleija uma fase, quando deveria, antes, valorizar-la.” (A Construção da Personagem, pág 207)


É claro que todas as palavras do papel tem importância e significado, mas se formos acentuar a entonação de todas, imagine que alegoria mais estrambólica teremos como resultado. Mas como eleger as que precisam de um toque a mais? Decupando, emoções e objetivos, texto e subtexto! A dúvida ou erro são sanados pela compreensão e experimentação, num rodízio de ênfases sendo colocadas cada vez em pontos diferentes das falas em questão. Assim poderemos compreender e atribuir a devida dramática, capaz de transmitir o objetivo que a fala carrega:


“O subtexto, com a sua trama de incontáveis fios, a linha direta de ação e o superobjetivo também podem contribuir para orientá-los.” (A Construção da Personagem, pág 220)


Quando se fala em entonação diferenciada sobre algumas palavras, não quer dizer que isso sempre represente um aumento de intensidade no tom da voz. Essa diferença também pode ser contrastada pela diminuição, usando um tom mais leve para essas palavras às quais se deseja dar ênfase.


  • EXERCÍCIO 19: repita a mesma frase de formas diferentes, cada vez enfatizando apenas uma palavra, em cada repetição troque a palavra que será enfatizada e perceba como cada versão puxa para um significado distinto.


Experimentando com a frase sugerida aos estudantes na narrativa do livro, confirmei a eficácia dessa ferramenta:


Uma pessoa conhecida de vocês veio aqui” (ênfase dando importância à quantidade, talvez mais pessoas fossem esperadas).


“Uma pessoa conhecida de vocês veio aqui” (ênfase no sujeito, talvez se queira fazer mistério sobre quem foi).


“Uma pessoa conhecida de vocês veio aqui” (ênfase no grau de relação e proximidade, explicitando que não foi alguém amigo).


“Uma pessoa conhecida de vocês veio aqui” (ênfase mostrando que era conhecida de quem está escutando, mas não de quem conta).


“Uma pessoa conhecida de vocês veio aqui” (ênfase na ação, talvez alguém que não se esperava ter coragem de ir até lá).


“Uma pessoa conhecida de vocês veio aqui(ênfase no lugar em que estão, possivelmente uma localização sigilosa descoberta por quem foi).


“Como na pintura, em que há tons fortes e fracos, meios tons, quartos de tons, em cores ou em claro-escuro, assim também na linguagem falada há uma gama correspondente, de diversos graus de força e acentuação.” (A Construção da Personagem, pág 222)


As palavras das frases terão naturalmente uma classificação de importância: poucas precisam ser mais enfatizadas, algumas nem tanto e outras menos ainda. Os dois níveis secundários precisam ser sutilmente rebaixados, para que o contraste na elevação das importantes seja percebido. Esse recurso produz camadas na fala, dando dimensão não apenas em altura mas também em ritmo, pois a ênfase pode ser dada também pela velocidade da pronúncia. Se todas as palavras da frase forem aceleradas e apenas uma lenta, essa logicamente se destaca.


Da mesma forma que as palavras de uma frase precisam ser dimensionadas, todas as frases de cada cena também precisam ser classificadas em níveis — lembrando que se não fizermos isso nossa interpretação ficará literalmente monótona, sempre no mesmo tom, sem variação emocional, terminando tal qual começou. Isso é um pesadelo para nós atores, do mesmo modo que seria para um cantor manter o mesmo tom durante toda a interpretação de uma música. Não é natural expressar bondade, maldade, sarcasmo, excitação, derrota, êxito e todo tipo de emoções humanas, no mesmo tom.


“Quanto maiores forem os recursos e as possibilidades ao alcance do ator, mais viva, poderosa, expressiva e irresistível será a sua dicção.” (A Construção da Personagem, pág 226)


Neste ponto, o sistema faz extensa instrução técnica sobre a fala, usando termos específicos da música e gramática. Não que não sejam proveitosas essas instruções, pelo contrário, mas, por ora, entendo que tentar incluir tantas tecnicalidades neste estudo de caráter introdutório à preparação de atores, imporia limitações que contrariam o que ele objetiva ser: acessível, democrático e o mais simplificado possível. Acredito que tudo passado por Stanislavski nesse ponto, se resume à instrução de que a fala se dê pela necessidade de expressar um sentimento interno, conferindo sempre se a forma de falar em cena está natural, se expressa precisamente o sentido interior que cada momento (unidade) carrega.


Sempre que tiver dúvidas sobre exagero e naturalidade na pronúncia ou entonação de alguma fala, se pergunte se esta fala soou como seria em sua vida pessoal, num diálogo com pessoas. Quando estamos à vontade falamos com verdade.


Todos os exercícios do sistema servem para nos condicionar a desenvolver uma segunda natureza que nos permita criar a vida de um espírito humano para o papel, e isso inclui a fala. A fala precisa sempre levar em conta as circunstâncias da cena, a personalidade e objetivos do personagem, além da orientação da direção. Frisamos muito a respeito da naturalidade, mas às vezes um fala, numa circunstância específica da narrativa, irá exigir artificialidade, como quando o personagem está mentindo e não é bom em disfarçar seu fingimento. Num contexto como esse, se assim é esperado do personagem em função da narrativa do filme, caberá fazê-lo.



A PERSPECTIVA NA CONSTRUÇÃO DA PERSONAGEM


“O ator é rachado em dois pedaços quando está atuando. Você se lembra do que disse Tommaso Salvini sobre isso: ‘o ator vive, chora, ri em cena, mas enquanto chora e ri ele observa as suas próprias lágrimas e alegria. Essa dupla existência, esse equilíbrio entre a vida e atuação, é que faz a arte.’” (A Construção da Personagem, pág 237)


Desde o princípio falamos na segunda natureza, mas neste ponto de A Construção da Personagem abordado com maior detalhamento sobre o estado criador não ser a sublimação da nossa personalidade, mas sim um tipo de divisão interior onde metade de nós se dedica a essa pessoa a quem estamos interpretando. Imagino que o objetivo exato seja converter nossa mentalidade artística no subconsciente que controla o papel, guiando-o com os estímulos que o sistema proporciona, nos lembrando a todo momento de nosso superobjetivo, subtexto, imagens mentais, etc.


Já sabemos que durante o trabalho não podemos pensar em nossa vida pessoal, nossos desejos, etc., mas sim sobre o personagem, ininterruptamente, praticando todos os estímulos que nos provoquem à experiência de realmente vivenciar o papel. Cônscios de nós mesmos, mas com foco exclusivo no papel. São duas existências em linhas paralelas, uma em função do papel e a outra da psicotécnica do ator em relação a seu trabalho.


A distância entre elas varia. Às vezes se estreitam, se distanciam ou se entrelaçam, como nos momentos em que somos tomados por forte inspiração subconsciente e depois nem conseguimos lembrar qual dos estímulos projetados abriram essa porta, pois apenas vivemos integral e fluidamente.


E qual o trabalho conjunto dessas existências paralelas dentro de nós durante o trabalho? Perseguir o superobjetivo de forma verdadeira, sentida e coesa. Descobrimos o superobjetivo, todos os objetivos menores e a partir de então todos os esforços e ferramentas são para atuar em favor dessa meta, em emití-la da maneira mais veraz e bela possível a nossa competência artística.


“Vamos concordar que a palavra perspectiva significa: a correlação e distribuição harmoniosa e calculada das partes de uma peça ou de um papel inteiro.” (A Construção da Personagem, pág 239)


Stanislavski fala que 3 perspectivas distintas nos guiam:


  1. Perspectiva lógica do pensamento transmitido: liga de forma lógica e coerente os muitos pedaços da interpretação.


  1. Perspectiva transmissora de sentimentos complexos: plano subtextual, objetivos, desejos, ambições, esforços, ações e todo contexto interior que se revela após um detalhado processo de decupagem e criação.


  1. Perspectiva artística: para dar brilho, leitura própria e originalidade à expressão do personagem.


Portanto, mesmo sabendo o que vai acontecer e como termina a história de nosso papel, não é isso que precisamos ou podemos ter em mente. Os personagens não perseguem o fim que terão, não tem certeza se seus planos darão o resultado esperado, eles perseguem seus objetivos. Imagine se comportar no começo de um filme, com base no seu desfecho? Impossível ter uma atuação correta sob esta perspectiva. Personagens que morrem ao longo do filme não sabem que vão morrer, não agem nas primeiras cenas influenciados pelo pesar de sua futura morte.


Personagens tem seu interior voltado para seus objetivos e desejos e sentimentos, é nisso que a nossa dupla existência deve focar em função da experiência verdadeira, em linha contínua. E, retomando sobre as dimensões da interpretação e as curvas emocionais que elas precisam formar para expor em distintas nuances as variadas emoções dos personagens: é mais interessante que alguém que vá morrer em dado ponto da narrativa, comece seguro e alegre ao invés de mórbido. O humor contrastante só acrescenta mais potência ao desfecho.


Stanislavski dá como exemplo uma peça que assistiu, em que os atores começaram com energia total e, mesmo sendo capazes de manter essa mesma energia por 5 longos atos, ainda assim não agradaram ao público. Porque tiveram uma interpretação de uma nota só, com a mesma carga do começo ao fim. Isso é muito tedioso. Mais à frente, numa analogia entre correr e atuar, ele afirma que ao invés de uma arrancada violenta seguida de pequenas paradas para retomar o fôlego, que foi gasto todo de uma vez, é melhor o embalo de uma arrancada leve e progressiva, uma corrida que vai aumentando aos poucos, até atingir o pico.


Será possível exercer tanto controle em nosso desempenho, sem ter nossa natureza profissional atenta? Não faria sentido estudar a preparação se no momento de aplicá-la não pudéssemos usá-la, em prática consciente. É natural e objetivada a manifestação da natureza interior dupla, em comunhão pela vida de nossos personagens.


“Tudo acontece em função destes dois elementos: a perspectiva e a linha direta de ação. Elas encerram o principal significado da criatividade, da arte, da nossa atitude para com atuação.” (A Construção da Personagem, pág 247)



TEMPO-RITMO NO MOVIMENTO


“Tempo é a rapidez ou a lentidão do andamento de qualquer das unidades previamente estabelecidas, de igual valor, em qualquer compasso determinado.

Ritmo é a relação quantitativa das unidades — de movimento, de som — com o compasso determinado como unidade de extensão para certo tempo e compasso.

Compasso é um grupo recorrente (ou supostamente recorrente) de valores de duração igual, aceito como unidade e marcado pela acentuação de um dos valores.” (A Construção da Personagem, pág 252)


Stanislavski explica que tempo é a rapidez ou a lentidão, que acelera ou arrasta a ação, que apressa ou retarda a fala. Ele faz uma ampla abordagem sobre cadências rítmicas, repleta de expressões extraídas do canto lírico, por sua relação direta com a cena de ópera da época. Para nós, que não temos um contato prévio com estes conceitos, talvez seja melhor trazer esses recursos mais técnicos da música num momento futuro, em outro estudo que desejo realizar mais à diante. Mas há algumas explanações sobre este processo que não podem ser adiadas:


“Onde quer que haja vida haverá ação; onde quer que haja ação, movimento; onde houver movimento, tempo; e onde houver tempo, ritmo.” (A Construção da Personagem, pág 268)


Tudo tem tempo e ritmo, seja em ações externas ou em emoções interiores. A perna balançando por ansiedade tem ritmo e tempo, a criança chorando tem ritmo e tempo, as falas dos vendedores ambulantes anunciando seus produtos na rua são praticamente uma orquestra, muitas vozes com suas variações de ritmo e tempo. Até as trocas sem palavras, em estado de comunhão por transmissão de energia sutil, tem ritmos e tempos próprios, assim como as emoções internas, invisíveis. Qualquer fato, sensação ou acontecimento, tem. O tempo-ritmo de um jantar em família não é o mesmo de um jantar solene, um beijo de despedida também não tem o mesmo tempo-ritmo do primeiro beijo. Cada pessoa tem seu próprio tempo-ritmo.


“Toda paixão humana, todo estado de ânimo, toda experiência tem seus próprios tempo-ritmos.” (A Construção da Personagem, pág 268)


Por isso estudamos e exercitamos as falas de um papel, para encontrar o tempo-ritmo que alinhe cada uma às emoções que as manifestam. Se elas não estiverem em consonância, darão uma impressão falsa ou não transmitirão o que a história necessita.


A possibilidade de definição técnica da fala, serve para garantir que através das ferramentas de entonações e pausas possamos alcançar uma boa expressão dos diálogos, em momentos que o impulso correto não nos venha espontaneamente. É o momento em que teremos uma abordagem inversa, agindo de fora para dentro, diferente da maioria recursos do sistema, que partem de dentro para fora. Nós mesmos nos daremos esses tempo-ritmos e para isso precisaremos das imagens interiores, as visualizações que criamos pelos estímulos de imaginação criativa, sugestões de circunstâncias e tudo mais por onde conhecemos os personagens e seus estados interiores.


A busca através dessa experimentação deve ser por uma associação rítmica, que induza a um estado de espírito com repercussões interiores, que traga à tona ações que as correspondam. Cada proposta rítmica, mais lenta ou mais acelerada, provocará uma resposta diferente.


  • EXERCÍCIO 20: escolha 3 músicas de ritmos e tempos completamente diferentes, determine uma ação a ser realizada e primeiro a faça sem som (algo simples, como ir até a geladeira e apanhar um copo d’água), em seguida repita a mesma ação uma vez ao som de cada música, tentando agir sob influência do presente tempo-ritmo musical.


A proposta não é dançar, mas sim embalar as ações internas despertadas a partir da ação guiada pelos ritmos das músicas. Tente entender o que cada música desperta em si. Liberdade? Altivez? Alegria? Raiva? Quem seria a pessoa dentro de você a quem essa sensação pertence? Por que sente o que sente? Para que precisa do copo d’água? Esse é o momento para deixar fluírem as provocações à imaginação em criação de uma personagem temporária para o exercício ou trabalhando com as emoções do seu papel em um filme.


Músicas naturalmente causam sensações e despertam sentimentos, investigue a carga psicoemocional das músicas e a partir da emoção central, vá construindo o personagem. Já se for fazer com um personagem de fato, um papel que foi contratado para representar, escolha músicas cujos ritmos aludam à emoção da cena trabalhada, para que elas possam servir de isca para fisgar as emoções que precisa sentir para agir e reagir.


Encontrada a música que favorece o trabalho de uma cena, no humor esperado do personagem, podemos usá-la também durante nosso esforço de manter a linha contínua de ação, para nós concentrar fora de cena durante uma gravação, escutando em fones de ouvido, que além transmitir o estímulo isolarão os barulhos da movimentação no set. Seja num personagem improvisado ou para um papel, os movimentos precisam seguir a direção dos objetivos (nunca trabalhe sem objetivos, recorra ao dispositivo de improvisação para montar circunstâncias, sempre que fizer exercícios avulsos) com a música servindo de proposta de tempo-ritmo.


“[...] o tempo-ritmo de movimento é capaz não só de sugerir, intuitiva, direta e imediatamente, sentimentos adequados e de despertar a sensação de que estamos experimentando aquilo que fazemos, mas também ajuda a despertar nossa faculdade criadora.” (A Construção da Personagem, pág 273)


No teatro usa-se música com frequência durante os trabalhos de aquecimento e preparação, podemos incorporar esse poderoso recurso também para o contexto do cinema e audiovisual.


A direção precisa estar atenta em garantir a variação de tempo-ritmo que cada ator precisa para seu personagem em cena. O elenco não pode estar inteiro sob a mesma cadência, pois representam pessoas diferentes, com objetivos e emoções distintas. Se todos os personagens estiverem no mesmo tempo-ritmo, a cena fica sem variação dramática, tediosa e mecânica. Existem momentos de comoção coletiva sob a mesma emoção, é verdade, mas esses são raros e especificamente premeditados pelo roteiro e encaminhados pela direção. Em todos os demais cenários, cada atriz e ator precisa ter seu tempo-ritmo próprio e individual, que também sofrerá variações ou do contrário cairá na monotonia.


Não podemos nos contentar em pintar a personalidade e emoções dos nossos personagens apenas com cores primárias, precisamos misturar as tintas e obter tons mais especiais, diferenciados, é isso que se espera de nosso potencial artístico enquanto atrizes e atores, a entrega de algo mais, uma atuação para além do óbvio. O público deseja ver todas as matizes da vida incorporadas nos personagens. E a paleta de tempo-ritmo precisa ser diversa, variando entre as unidades e momentos de um mesmo personagem, cada um no elenco precisa ter sua própria combinação.


Falando em variações de tempo-ritmo dentro de uma mesma ação, um bom exemplo é quando alguém está confortavelmente acomodado num sofá enquanto joga videogame. As mãos se movimentam freneticamente entre os botões do controle e o olhar também corre ligeiro para acompanhar as imagens que passam na tela, enquanto o restante do corpo permanece num tempo-ritmo completamente distinto, inerte, relaxado. Nisso temos uma única pessoa, em uma circunstância, mas com vários tempos e ritmos distintos operando a ação.


Às vezes, tentamos agir externamente em oposição ao sentimento interior, tentando passar uma imagem diferente. Por exemplo, numa situação de trabalho onde o funcionário queira dizer umas boas ao chefe antipático, mas sente que precisa conter o impulso para não arriscar seu emprego, Alguém que secretamente sofre de profunda depressão, mas finge estar bem e alegre o tempo todo para disfarçar o estado do qual não deseja falar. embora tentemos esconder, há sempre detalhes que fogem do nosso controle e apontam o verdadeiro estado, movimentos de impulsos inconscientes e incontroláveis que acontecem em cadência distinta à de nossa postura conscientemente controlada.


Se não olharmos com atenção, esses gestos contrastantes podem passar despercebidos, mas o público é atento ao filme e seu olhar pericial não deixará escapar a falsa tranquilidade de um funcionário em seu limite, nem o olhar melancólico por trás do jeito brincalhão de alguém. Algumas pessoas fazem leitura corporal com excelência, de forma consciente, enquanto outras apenas captam a sensação do conjunto comportamental, mas ambos os tipos têm capacidade para perceber a verdade e a mentira das expressões, entregues pelas dissonâncias gestuais.


Se é do comportamento humano, precisamos incorporar na atuação. Mas precisamos fazer isso o mais distante possível da obviedade e do exagero, lembrando da regra dos menos 90% que nos indica sempre enxugar e diminuir os gestos, para fugir dos mimetismos. Não devemos nem podemos nos render aos cacoetes teatrais nesse jogo de contrastes, subestimando a inteligência e sensibilidade do público, não podemos soltar a mão da sutileza, da coerência e do bom senso.


No cinema, os close-ups (planos fechados) da câmera se encarregarão de maximizar os gestos que precisem ser mais evidenciados. Na vida é tarefa difícil esconder nossas emoções de quem nos olha com atenção e sensibilidade, então não precisamos exagerar para que sejam percebidas, basta senti-las e agir de acordo. Nosso primeiro recurso para esconder emoções costuma ser evitar contato visual, já que olhar entrega com maior facilidade o que o restante do corpo tenta ocultar — por isso os olhos são um dos principais pontos focais em processos forenses de leitura corporal.


  • EXERCÍCIO 21: Aproveite a mesma ação do exercício anterior, agora aplicando emoções próprias ao invés de música. Escolha três emoções marcantes e de humores diferentes (alegria, tristeza, decepção ou qualquer outra) e trabalhe a ação sob cada uma das diferentes emoções, separadamente, perceba a variação de tempo-ritmo de expressão que cada emoção distinta provoca na ação.



Em todos os exercícios do sistema precisamos lembrar dos estímulos disparadores da imaginação, dos questionamentos essenciais e sugestões criativas. Como eu agiria agora se estivesse alegre? Qual o motivo da alegria? Quando o fato alegrante acontece? E assim, sucessivamente. Se usarmos o exercício para trabalho de um papel que recebemos, não iremos trazer sugestões de emoções ou humores aleatórios e nem externos, buscaremos na nossa biblioteca emocional sentimentos análogos aos que a personagem demanda.


Entre as instruções de tempo-ritmo intrinsecamente associadas a noções musicais que Stanislavski propõe, há uma que precisamos descobrir como medir mesmo sem conhecimento técnico sobre música: intensidade rítmica. E se alguma situação nos deixar nervosos antes de entrar em cena, colocando nossa intensidade rítmica em 100% enquanto a cena pede apenas 20% de intensidade? Precisamos estabelecer uma escala de intensidade emocional dentro de nossa biblioteca emocional, quantificando as ações para poder ajustá-las, usando as ferramentas de relaxamento e concentração já indicadas neste estudo.


Uma única atriz ou ator que domine a noção de tempo-ritmo, é capaz de contagiar todo elenco com o compasso correto para a cena que dividem. É comum que atores experientes sejam reconhecidos pela influência positiva que sua presença exerce sobre os colegas que têm menos presença, sensibilidade ou maturidade cênica. O tempo-ritmo geral da narrativa, corresponde à soma da linha direta de ação mais o subtexto. Quem pode e deve avaliar se tudo está correndo no tempo-ritmo certo, é a direção do filme.


“[...] qualquer ser humano deve ao menos sentir o índice de velocidade ou qualquer outra medida dos seus movimentos, ações, sentimentos, pensamentos e respiração, da pulsação do seu sangue, das batidas do seu coração, do seu estado geral, em suma.” (A Construção da Personagem, pág 293)


Sabemos reconhecer quando acordamos num ritmo mais lento, depois de uma noite mal dormida ou por cansaço acumulado. Quando a correria das tarefas é muito intensa faz o dia parecer ter sido mais longo que o habitual, ou quando se faz pouco e o dia parece ter passado rápido demais. Isso varia, um dia agitado pode parecer curto e um dia monótono pode parecer longo, depende da percepção pessoal de cada um. Escalas alheias não nos servirão com precisão, por isso que às vezes a direção tenta passar uma ideia para ajustar a atuação e o ator não compreende, continua na mesma porque a referência não lhe afetou, a direção precisa ser muito hábil em se conectar ao elenco de formas personalizadas a cada um.


Precisamos treinar nossa própria capacidade de quantificar a intensidade de tempo-ritmo. Para isso podemos visitar e quantificar as emoções de nossa biblioteca emocional ou fazer isso com situações “banais” do cotidiano, mas sempre praticando para reconhecer nosso espectro pessoal e consequentemente entender o compasso correto para trabalhar em cada etapa de nossos papéis. Faça decupagens do tempo-ritmo de seus dias e ações, tomando nota, esse é um ótimo dispositivo para internalizar essa capacidade de reconhecimento que irá nos favorecer durante o trabalho.



O TEMPO-RITMO NO FALAR


“A verdadeira arte do palavreado tem de ser aprendida e começa com o domínio da dicção muito lenta e exageradamente precisa. Com a repetição frequente, nosso aparelho de fonação fica tão bem treinado que aprende a executar aquelas mesmas palavras com o máximo de índice possível de velocidade.” (A Construção da Personagem, pág 303)


A menos que o personagem exija uma fala ininteligível, precisamos dizer as falas de forma totalmente compreensível. Essa colocação de Stanislavski destacada acima, é muito importante para o cinema, pois se alcançarmos essa desenvoltura na pronúncia, evitaremos algumas repetições de takes, que sempre causam desgastes na emoção da atuação. Além da boa pronúncia, essa habilidade nos permitirá aplicar um toque de melodia às palavras, favorecendo aquela desejada variação que faz com que as falas não sejam monótonas. É claro que não vamos usar o tempo-ritmo para dizer um diálogo de forma melodiosa sempre, o objetivo não é falar de forma artificial, injustificavelmente cantada, mas sim para salpicar um pouco de ritmo aqui e alí. Toda fala tem ritmo, mas algumas são mais carregadas disso que outras.


Vejamos como exemplo os sotaques de algumas regiões do Brasil, como o sotaque baiano que traz belíssima musicalidade na prosa cotidiana. É uma fala charmosa, marcante, atraente, interessante e encantadora. Já no sotaque de minha terra natal, Belém do Pará, costumamos dar ênfase no começo da fala — tanto na primeira palavra da maioria das orações, quanto na primeira letra de algumas palavras, como em nossa famosa exclamação “égua!”, que dizemos "ééé-gua” quando queremos realçar ainda mais a carga dramática da exclamação. Para além dos sotaques, outro bom exemplo de uso desse recurso melodioso é a forma de falar das crianças, que quando querem pedir alguma extravagância apelam para um tom manhoso, porque já sabem que amolece o coração dos pais.


Essa é a meta do ajuste rítmico das falas de acordo com a vida interna dos personagens: convencer os outros do que estamos dizendo e sentindo, sobretudo os colegas de cena, pois daí teremos comunhão, elemento essencial para que haja sinceridade nas interações. E se os convencermos verdadeiramente, temos maiores chances de convencermos o público. Usamos um tom, tempo e ritmo distintos para cada diálogo. Quando nos dirigimos afetuosamente à pessoa com quem nos relacionamos intimamente usamos um tom, quando vamos ao banco para pedir a abertura de uma conta não usamos esse mesmo tom. Nosso tom de voz varia, de acordo com as relações e objetivos. Tempo-ritmo na fala fortalece a mensagem!


Quem tem um bichinho de estimação em casa sabe e usa dessa fala trabalhada em tempo-ritmo melodioso. Desenvolvemos uma maneira doce e suave para falar nos momentos de carinho e outra grave e cortante para os momentos de repreensão. Os pets até podem aprender a entender uma palavra ou outra, associando às ações que as seguem, mas a compreensão está sobretudo ligada ao tom da voz.


  • EXERCÍCIO 22: Caso tenha um animalzinho de estimação, cantarole alguma frase comum de sua comunicação e perceba como irá compreender, mesmo sem a definição exata das palavras, só pelo poder de comunicação num tempo-ritmo que ele já conhece.


Podemos experimentar também a repetição dessa frase cantarolada até compreender seu tempo-ritmo, depois substituir por outras palavras que se encaixem nesse exato tempo-ritmo da frase anterior e dizer ao animalzinho. Certamente a troca de palavras não resultará na falta de resposta, já que para eles (que não entendem nossa língua) o tom e o tempo-ritmo é que entrega a mensagem.


Indico isso por experiência própria. Outro dia eu insisti na ideia de que a minha gata Sophie era a reencarnação de outra gata que tive, que se chamava Emily, porque além de vários trejeitos em comum o olhar e o focinho das duas são idênticos. Quando chamei a Sophie de Emily, ela olhou para mim, naquele momento tive certeza que estava diante da mesma alma. Me apressei em chamar meu companheiro para mostrar a evidência de minha descoberta, tornei a chamar ela de Emily para que ele testemunhasse e ela olhou novamente. Eu estava pronta para espalhar minha descoberta em um post nas redes sociais, até que meu noivo (mais sensato e menos emocionado que eu naquele momento) sugeriu que eu chamasse ela por outro nome completamente diferente, mas no mesmo tom. Chamei ela de Astolfo e minha teoria caiu por terra, pois ela olhou novamente. Nada de reencarnação, apenas tempo-ritmo!


Importante lembrar que uma fala inteira ou diálogo não podem acontecer sob o mesmo tempo-ritmo, senão caímos novamente na linearidade mecânica, sem as desejadas nuances que atribuem intensidade e dimensão. O tempo e o ritmo precisam se acentuar e ser mais evidentes em alguns momentos, compondo as camadas enriquecedoras.


“Com esta base podemos argumentar o seguinte: quanto mais rítmico for o verso ou a prosa ao serem falados, mais claramente definida será a nossa experiência dos pensamentos e emoções subjacentes nas palavras do texto. E, reciprocamente: quanto mais claros, definidos e rítmicos forem os pensamentos e as emoções que experimentamos, mais necessidade eles terão de uma forma rítmica de expressão verbal.” (A Construção da Personagem, pág 311)


Outro aspecto a ser incluído dentro do tempo-ritmo são as pausas, e esse é inclusive o elemento que quebra qualquer ideia de que tempo-ritmo sejam recursos exclusivos à fala. Em ação silenciosa ainda estamos sob o véu do tempo-ritmo, a linha existencial não se interrompe nesses momentos, o ritmo da emoção interna se mantém nos gestos, movimentos, olhares e energia sutil. Se não incluímos as pausas certas nas falas elas ficam corridas, artificiais, e se incluímos pausas demasiadamente longas, caímos no exagero. É um trabalho minucioso, por isso os ensaios são tão importantes.


É preciso estudar e aprender a dosar sob o que cada momento pede. Nem todos nós dominaremos completamente o prisma do tempo-ritmo cênico. Alguns terão mais facilidade para o aspecto físico, outros para o verbal, uns a nenhum dos dois e mesmo estes poderão ter ótimos desempenhos desde que atuem com sentimento e verdade, transmitindo a energia da vida interna de seus personagens de forma sutil. O estudo é essencial, mas mais poderoso ainda é o estudo associado à experiência prática — tanto para a direção quanto para o elenco.


Enquanto uns serão fluentes na variação rítmica, outros estarão condicionados a ter uma experiência mais linear — para estes a atuação será mais limitada, pois só lhes caberão bem os papéis que demandem seu compasso específico. Mas isso não é de todo uma desvantagem, isso pode também torná-los especialistas bem sucedidos sobre gêneros ou arquétipos específicos, desde que consiga cultivar pelo menos algumas nuances dentro deste único ritmo, de forma que suas interpretações tenham as curvas dramáticas essenciais a qualquer papel.


Aos que não conseguem variar nem mesmo dentro de um único tempo-ritmo, Stanislavski enfatiza com objetividade cortante sobre a falta de potencial para a arte criadora, fadados à atuação mecânica e incapazes sequer do uso de subtexto — mas calma, não há porque se desesperar, existem muitos atores com essa característica que conseguem trabalho e até fama — destaco entre suas críticas a conclusão mais branda:


“Temos diretores e atores que são apenas artesãos mecânicos e outros que são esplêndidos artistas.” (A Construção da Personagem, pág 318)


Por hora basta este olhar geral sobre a ferramenta de tempo-ritmo, visto que ela está contemplada nesta adaptação do sistema e temos a oferta de tantas outras ferramentas complementares. Não vou estender sobre o compasso neste momento, mas ressalvo que é uma grande vantagem e vale muito a pena nos esforçarmos, posteriormente, por um estudo mais detalhado em cultivo desta noção, até quem sabe estudando a raiz musical e aprofundando-se nas técnicas de marcação com uso do metrônomo, como o sistema indica.


“Há uma interdependência, uma interação e um elo indissolúveis entre o tempo-ritmo e o sentimentos e, reciprocamente, entre o sentimento e o tempo-ritmo.” (A Construção da Personagem, pág 322)



ÉTICA E PADRÕES


Minha percepção sobre algo muito comentado no meio da atuação mudou bastante desde o início de minha formação como atriz para os dias de hoje, falo das famosas “panelinhas". Quem nunca ouviu falar que “fulana” ou “beltrano” fazem parte de uma panelinha? Isso é dito de pessoas que são constantemente repetidas nas produções dos mesmos realizadores.


Quando mais jovem, eu pensava que essa fosse uma prática injusta, limitadora. Me parecia muito excludente que as pessoas formassem grupinhos e não dessem muita oportunidade a outras, mas hoje sei que não é sobre exclusão e sim sobre a preciosidade raríssima de conseguir formar uma boa equipe. Especialmente no contexto iniciante — onde nem todos alcançaram o nível básico de profissionalismo e comprometimento — é super comum lidar com todo tipo de comportamentos desleixados e danosos como atrasos, picuinhas a nível pessoal e infinitas outras formas de condutas irresponsáveis.


No início deste estudo dei o exemplo de assistentes que se intrometem a dar sugestões indesejadas ao elenco, mas isso é o mínimo, acontecem coisas bem piores. Já vi até os esforços de uma direção e produção competentes serem sabotados pela boêmia de outros membros da equipe, que acharam que seria “boa ideia” farrear na madrugada anterior ao início das gravações, chegando não apenas em atraso, mas ainda declaradamente abertamente sobre seu cansaço e falta de vontade de estar no set. Isso é absolutamente absurdo, precisamos honrar a oportunidade de gravar um filme. Mas é importante pontuar que em meio a estes existiam profissionais excelentes, que independente do que fizeram antes das gravações, chegaram e deram seu melhor e com toda boa vontade no set.


Esta não é uma crítica moralista, mas é um alerta e, mais que isso, um conselho sobre escolhas que sim podem comprometer o indivíduo em início de carreira. O cinema é uma arte muito social, feita em conjunto, os desleixos e más condutas acabam seguindo as pessoas por bom tempo e, inevitavelmente, isso fecha algumas portas. Isso é agravado quando notado um padrão de repetição, ninguém quer em sua equipe alguém que já trouxe problemas para várias outras equipes.


Já pensou, todo trabalho de decupagem, meses de planejamento, arranjo de locações e toda movimentação em torno de um set com várias pessoas por conta da realização, desabando pela irresponsabilidade de uma ou duas pessoas? Vi isso acontecer tantas vezes, que finalmente entendi o valor e a necessidade de formarmos nossas equipes com quem nos traz segurança, agregando só as pessoas mais comprometidas e dedicadas. Quando num mar de egos inflados encontramos trabalhadores com real vontade, compromisso, empolgação e bom humor, precisamos mesmo nos agarrar a elas e trazer conosco em todas as oportunidades quanto possível, é apenas sensato. Manter parte da minha crença em dar oportunidade a pessoas novas, sim, mas dificilmente a quem antes trouxe uma experiência ruim.


Especificamente sobre o elenco, não há prejuízo maior do que ter atrizes ou atores que tendem ao “estrelismo”, que priorizam um estilo de vida que não preserva seu aparelhamento de trabalho (corpo, voz e mente) ou que não se dedica a qualquer processo de preparação, que não se busca aprimorar. Se para outros membros da equipe podem haver exceções, para o elenco não há. Uma única atuação ruim pode estragar completamente um filme.


Atrizes e atores precisam chegar para os ensaios e gravações devidamente descansados e bem dispostos. Há muitos tipos difíceis de se ter no elenco. Aqueles que recebem uma correção da direção e ao invés de incorporar a recomendação em sua atuação, fecham a cara e repetem o mesmo de antes, por puro capricho do ego, sem contar os que tratam mal os outros atores e membros da equipe — e estes superam até os que chegam atrasados e cheios de justificativas pífias, pois comprometem não só seu trabalho, mas também todo o bem estar geral da equipe, que deve ser sempre uma das maiores prioridades. No fim das contas, nunca sabemos com certeza se filme dará certo, se será bom, o que temos de imediato é a experiência do set, ela precisa ser boa, saudável, não pode haver espaço para posturas desrespeitosas e degradantes.


Faço essas afirmações não só por opinião pessoal, isolada, mas também com o respaldo extra das conclusões de colegas e grandes mestres: talento não é tudo, muitas vezes o sucesso é reservado aos dedicados e comprometidos, ao invés dos talentosos. Aos que sabem como entrar e sair das realizações, com profissionalismo e respeito pelos colegas.


Precisamos compreender a diferença entre talento e vocação. Alguém talentoso pode dar um verdadeiro show em cena... mas de que adianta isso, depois de chegar com horas de atraso, deixando os colegas de elenco estressados e aborrecidos com sua falta de compromisso? As pessoas que se atrasam provavelmente não tem noção do dano que causam. Se foi marcado para que todos cheguem às 7h da manhã e alguém chega depois da hora essa pessoa, de forma consciente ou não, se coloca como superior, como se seu tempo fosse mais valioso que o das outras e por isso todos devessem esperar por ela.


Só isso já é suficiente para provocar um clima geral muito ruim no set, que além de afetar a harmonia laboral, também afeta o psicoemocional de quem deveria estar inteiramente entregue à vivência do papel. Não foi à toa que Stanislavski dedicou um capítulo inteiro sobre ética nesta segunda parte do sistema. Destaco aqui sua fala de abertura do capítulo, que traz a síntese:


Chegou a hora de falar mais sobre um elemento — começou hoje Tortsov — que contribui para estabelecer um estado dramático criador. É produzido pelo ambiente que circunda o ator no palco e pelo ambiente da platéia. Nós o chamamos de ética, disciplina e também senso de empreendimento conjunto em nosso trabalho no teatro.


Todas essas coisas, reunidas, criam uma animação artística, uma atitude de disposição para trabalhar juntos. É um estado favorável à criatividade. Não sei descrevê-lo de outro modo. Não é o próprio estado criador, mas é um dos fatores principais que contribuem para ele. Ele prepara e facilita esse estado.


Chamá-lo-ei de ética do teatro, porque representa um papel importante na preparação prévia para o nosso trabalho. Tanto o próprio fator, como o que ele produz em nós e para nós mesmos são importantes, por causa das peculiaridades da nossa profissão.

O escritor, o compositor, o pintor, o escultor não sofrem a pressão do tempo. Podem trabalhar no local e hora que acharem mais convenientes. Dispõem livremente do seu tempo.


Isto não se passa com o ator. Ele deve estar pronto para produzir numa determinada hora, segundo o anunciado. De que modo poderá ele organizar-se para estar inspirado no momento preestabelecido? Isto não é nada simples.


Ele precisa de ordem, disciplina, de um código de ética, não só para as circunstâncias gerais do seu trabalho como também, e principalmente, para os seus objetivos artísticos e criadores.” (A Construção da Personagem, pág 333)


É raro encontrar atrizes e atores que chegam com energia total, no horário ou até mesmo minutos antes, que tratam bem seus colegas e toda equipe e recebem sem sentimentalismo egóico os ajustes necessários na atuação, sendo sempre profissionais e dedicados e bem dispostos de modo geral. Então, é apenas inteligente e sensato repetir a boa experiência de trabalhar com essas pessoas em quantos trabalhos for possível, ao invés de arriscar ter sempre elencos totalmente novos. Se for puder evitar de lidar com irresponsáveis, que deixarão a desejar ou comprometerão a realização, evite. E é por isso que as panelinhas tem seu valor e razão de ser.


Enquanto elenco e direção, precisamos estar sempre cientes da necessidade de comunhão, não só dentro de cena mas também fora dela. Troca e respeito devem reinar absolutas, sem abrir espaço para problemáticas desnecessárias. O evento de um set inevitavelmente já impõe problemáticas suficientes. Se sabemos de algum exercício e técnica ao qual nosso colega de cena não teve acesso, compartilhamos com ele, isso não é o mesmo que instruir um concorrente, mas sim um gesto que servirá para elevar a qualidade geral da atuação no filme. Generosidade é uma virtude necessária no contexto das produções iniciantes onde há escassez de recursos. Não fazemos filmes sozinhos, não atuamos sozinhos, precisamos nos fortalecer e ajudar uns aos outros em todos os sentidos possíveis, pois no fim todos sairão ganhando com isso.


Reitero o que disse no início desse estudo, a arte criadora não se atrai pelos que chegam em busca de status de sucesso e fama — e tampouco terão sucesso em encontrar isso nas produções do contexto iniciante. Os que não entenderem o caráter colaborativo que esse cenário exige se arriscam a ficar pelo caminho, pois serão convidados a trabalhar uma única vez e depois serão preteridos, em favor dos que estejam realmente atentos e entregues à arte criadora, que amem a arte em si mais que se amem na arte, como diz Stanislavski.



PADRÕES DE REALIZAÇÃO


A base criadora do sistema é o aforismo de Alexandre Pushkin, um dos maiores dramaturgos russos, considerado por muitos o maior poeta e fundador da literatura russa moderna:


“Sinceridade de emoções, verossimilitude de sentimentos em circunstâncias dadas, isto é o que nossa mente requer do teatrólogo.” (A Construção da Personagem, pág 359)


Neste estudo procuramos adaptar para o cinema um sistema pensado para teatro, como muitos ícones da preparação de atores fizeram com este conjunto de ferramentas, desde seu lançamento. Alguns dos principais serão abordados na sequência de textos deste estudo, que ao todo traz cinco textos e cinco vídeos extraídos do registro audiovisual em documentação da parte prática da pesquisa. Esse tipo de adaptação não foi apenas prevista pelo autor, acima de tudo foi seu maior desejo, que seu trabalho servisse de ponto de partida para a eterna busca e experimentação que devem ser a espinha dorsal da atuação. Por isso é que o sistema proporciona tantos dispositivos para a construção interna e externa da vida de personagens, para que possamos treinar nosso aparelhamento psicológico e físico, buscando o alcançar nosso máximo potencial.


Tantos recursos que é preciso organizá-los e rever com frequência. Conhecer o sistema não é a chave para o estado criador, a chave é praticá-lo!


Mente, Vontade e Sentimentos, esta é a santíssima trindade motivadora do interior, que se estrutura da seguinte forma:


  1. A imaginação: sugestões criativas e circunstâncias.

  2. Decupagem: unidades e objetivos.

  3. Concentração: atenção para alcance do superobjetivo.

  4. Atuação genuína: verdade e fé sobre o papel.

  5. Objetivos válidos: desejo leva a ação.

  6. Intercâmbio: ação com adaptação e comunhão.

  7. Despertar interior: busca pelo tempo-ritmo.

  8. Sinceridade: uso da memória afetiva.

  9. Coerência: lógica e continuidade.


Tudo isso irá favorecer a criação e experiência da segunda natureza, da qual vivenciamos o papel e toda sua multiplicidade existencial.


O ator neste caso executa ações, não faz apenas encenação, sente realmente, como ser humano, aquilo que está fazendo. Não se dá ao luxo da simulação teatral, sente, em vez de imitar os resultados dos sentimentos.” (A Construção da Personagem, pág 371)


Cada etapa do sistema e seus processos indicados, serve para que possamos compreender os elementos fundamentais e imprescindíveis a uma vida humana interna e externamente, nos condicionando ao alcance do estado criador, dentro do qual fluirão os sentimentos e expressões verdadeiras do papel. São como degraus, que escalados nos permitirão acesso ao subconsciente, onde habita a inspiração.



CONCLUSÕES


Como o próprio dizia, Stanislavski não criou o sistema. O que ele fez foi coletar dispositivos de reprodução da natureza humana, para que com isso sejamos capazes de criar experiências reais para nossos papéis, desviando da atuação artificial, do fingimento e da caricatura. Em poucas palavras, ele ensina um caminho saudável para a arte de viver o papel.


Às vezes levamos anos de terapia para compreender algum processo interno, traumas que precisamos tratar para amadurecimento próprio. Da mesma forma, não será da noite para o dia que iremos desenvolver fácil acesso ao estado criador ou que entenderemos cada um dos conceitos e práticas indicadas pelo sistema. Somente através do estudo e exercício constante poderemos alcançar isso.


Tentei incluir neste estudo o máximo possível de recursos do sistema, que possamos usar no campo das produções iniciantes do cinema e audiovisual em geral, mas isso não quer dizer que precisamos praticar tudo de uma vez e ter tudo acessível em mente o tempo todo ao longo do processo de preparação. Às vezes, dependendo do nosso grau de inspiração, recorrer a apenas uma das ferramentas já será suficiente para nos elevar ao estado criador. Mas quando um só estímulo não for suficiente, teremos todos os demais aos quais recorrer, felizmente estão todos interconectados e são absolutamente compatíveis.


“Não podem pretender fazê-lo de uma só vez. É como ir à guerra: tem-se de conquistar o terreno pouco a pouco, consolidar os ganhos, manter contato com as comunicações da retaguarda, expandir, conquistar novas novas vitórias, antes que se possa falar em conquista definitiva.” (A Construção da Personagem, pág 385)


Entretanto, as etapas de decupagem são inegociáveis, indispensáveis. É impossível chegar ao estado criador e sentir as emoções do papel e ter reações coerentes, sem conhecer a fundo o personagem. Só na decupagem compreendemos os objetivos, subtextos e preenchemos as lacunas do que não foi dado no roteiro. Se a mente não estiver convencida da pessoa que estamos interpretando, não o faremos com verdade e ela se convence através das respostas que recebe sobre seu caráter, personalidade, desejos, passado e objetivos. Decupar é mergulhar profundo para obter essas respostas.


Acima de tudo, a partir de hoje, comece a observar melhor o mundo e as pessoas, os animais, as situações, discussões, lugares... inicie um diário para tomar notas dessas visões e as sensações que elas proporcionam, pense também em suas experiências passadas e simule novas situações, imaginadas.


Disponibilizei muitos exercícios ao longo do texto, que favorecem esse treino interior, em desenvolvimento da sensibilidade criativa. Para facilitar ainda mais, trago alguns deles nos vídeos que fazem parte deste projeto de pesquisa e estarão do canal do YouTube (link) — mas se atente que esse compartilhamento audiovisual de minhas práticas não são tutoriais, são apenas um demonstrativo sobre os efeitos. Para compreensão dos exercícios é preciso compreendê-los teoricamente, através da leitura.


Esse estudo de forma nenhuma visa substituir ou superar os livros de Stanislavski, a intenção é que sirva de porta de entrada, um contato inicial com esse apanhado tão farto de instruções técnicas sobre atuação. O sistema é tão diverso, que na sequência apresentarei outras 4 linhas de preparação que usaram apenas partes dele para desenvolver escolas de preparação norte-americanas conceituadas e praticadas mundialmente — e essa é mais uma prova de que que o sistema é tão eficaz e abundante em dispositivos, que mesmo o foco em partes traz grandes benefícios ao desempenho cênico.


Meu objetivo pessoal com essa adaptação é que nós, atrizes e atores de produções iniciantes, também possamos nos valer dessas ferramentas que funcionam bem para milhões de artistas há quase 100 anos. Que tenhamos neste material uma possibilidade de nos preparar para atuar nessas produções que, geralmente, não têm recursos suficientes para contratar preparadores ou diretores de elenco. Quantos de nós já trabalhamos com profissionais da preparação, que nos apresentassem caminhos como os que o sistema apresenta? Basta conferir os créditos dos filmes para saber que esta figura é ausente em quase todas as produções.


Em Hollywood e outros grandes mercados de cinema internacional, além de contar com boa formação cênica, a maioria dos atores e atrizes recorrem a preparadores para desenvolvimento de cada um de seus papéis. Por que não podemos nos espelhar neste exemplo? Como disse o pensador e escritor Peale, devemos mirar na lua, pois, se errarmos, ainda estaremos entre as estrelas. Temos direito de tentar ser grandes atrizes e atores, e se há caminhos para isso também é nosso direito percorrê-los.


No Estudo Sobre Preparação de Atores tento falar não só a atrizes e atores, mas também a diretoras e diretores. É urgente a transformação do atual modus operandi, em que as direções tão atentas às outras áreas e negligentes com o elenco. A direção que se esforce para compreender o sistema (ou que desenvolva seus próprios meios de preparação) terá nas mãos alguma garantia de que sua visão será representada da forma que deseja, ao trabalhar com o elenco em etapa anterior às gravações. Lembrando que este é um processo que serve para amparar o elenco também durante suas gravações, contra o nervosismo que acomete a maioria diante das câmeras, poupando-os de representações genéricas que não imprimem as singularidades da essência existencial dos personagens.


Como disse antes, a inspiração não é exclusiva à técnica, alguém sem nenhuma instrução pode sim receber uma onda de inspiração, mas é como diz Stanislavski:


A maior parte da gente de teatro não quer entender que acidente não é arte, não pode servir de base para construção. O mestre ator tem de exercer controle total sobre o seu instrumento e o instrumento do artista tem complexo mecanismo.” (A Construção da Personagem, pág 389)


Ser uma atriz ou um ator da verdadeira arte criadora, capaz de impactar profundamente pela sua expressão dos personagens, é ser capaz de trabalhar bem mesmo quando a inspiração não vem. É saber caminhos para despertar a inspiração e ser capaz de representar com dignidade e competência, desde os personagens mais simplórios aos mais complexos.


Se, assim como o sistema, considerarmos que atuação é a capacidade de constituir uma verdadeira segunda natureza existencial onde acomodaremos a vida de nossos personagens, qualquer um que desenvolva esse potencial pode se tornar um ator, mesmo que o faça de maneira autodidata. A capacidade de desempenho com qualidade e continuidade, é o que separa o profissional do amador — ou por acaso alguém chamaria de profissional um músico que não consiga tocar, pelo menos, qualquer melodia de notas simples? Improvável. Então, acredite quando digo que para atuar não é obrigatório ter uma formação oficial, em escolas renomadas e custosas de interpretação.


Uma boa dose de estudo, comprometimento e prática, farão milagres!


Assim como Stanislavski, espero que esse material sirva de estímulo e ponto de partida para as próprias pesquisas de quem o acessar, para que avancem e no desenvolvimento de seus próprios processos e exercícios inspiradores, da mesma forma que boa parte dos exercícios indicados aqui foram criados por mim, sob inspiração do sistema.


Stanislavski conclui a segunda metade do sistema advertindo sobre os perigos da prática inicial sem o acompanhamento de alguém treinado, que auxilie minimamente a compreensão dos recursos. Mesmo formada como atriz e após este trabalho de pesquisa, não assumo totalmente esta capacidade, ainda, mas será um prazer dialogar e esclarecer tanto quanto possível sobre as dúvidas que possam surgir em relação a esta adaptação ou ferramentas do sistema. Nosso meio para isso serão as caixas de comentários no final de cada texto. Faremos aqui mesmo no site esta preciosa troca de esclarecimentos, tornando-a um complemento à pesquisa.


Este texto que aborda o sistema é a espinha dorsal da pesquisa, sendo original e mais aprofundada e longa que os demais textos do projeto, que trazem traduções curtas introduzindo as principais linhas de preparação de atores para cinema norte-americanas, que ramificam a partir do trabalho de Stanislavski. A intenção destes textos complementares é introduzir tais escolas, a fim de nos trazer exemplos para praticar e desenvolver adaptações do sistema. Este material é resultado do projeto de pesquisa ESTUDO SOBRE PREPARAÇÃO DE ATORES, realizado com o apoio do Fundo de Arte e Cultura de Goiás.



Texto por Bruna Vinsky


Feci quod potui, faciant meliora potentes.



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Bruna Vinsky

Produtora, formada em teatro, bacharelando em cinema e pesquisadora no campo da preparação

de elenco.

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